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Podemos sempre fingir

Podemos fingir que o regime não está em crise. Que os sucessores da coligação Portugal à Frente de 2015 (PSD, PP, Iniciativa Liberal e Aliança) não perderam, na semana passada, cerca de 320 mil votos, depois de em 2015 terem perdido cerca de 700 mil.

Que o PAN não foi buscar mais 90 mil eleitores do que há quatro anos. Ou que o Chega não teve a maior distribuição nacional de entre os novos partidos eleitos, e não recuperou o voto a comunidades suburbanas tipicamente desiludidas e voláteis.

Fingir ainda que o PS, depois de uma legislatura pacífica e próspera e de um logro pouco contestado de “reposição de rendimentos”, não recuperou apenas 125 mil votos desde 2015. Fingir que o Bloco não perdeu cerca de 60 mil, e o PCP 120 mil.

Ou fingir que não se abstiveram menos 288 mil pessoas do que há quatro anos. Ou que não houve mais votos nulos, ou em branco*.

Podemos fingir que os partidos são, como um dia foram, uma emanação da sociedade civil, e albergam patrões, funcionários, trabalhadores por conta de outrem e profissionais liberais. Gente que vai de lá para casa, ou para o trabalho, que não vive daquilo nem vive naquilo.

Podemos fingir que não são, como hoje são, organizações de “carreira”, iniciáticas e fechadas, onde os afiliados se apascentam sem a candura, o risco e a coragem das causas que se seguem por vocação e prazer. Que a sociedade não pede sangue novo, mas antes gente que anda naquela vida há 20 anos, mas ainda não apareceu assim tanto na televisão.

Podemos, enfim, fingir que o discurso de discriminação positiva das minorias étnicas e sexuais, dos deficientes, ou da proteção animal, tem em Portugal o lastro que tem nos Estados Unidos e noutros países anglófonos, e importá-lo como se fossem caramelos do Corte Inglès.

Aliás, uma das coroas desta leitura dogmática e abstracta da realidade é esta capacidade de a moldar e engendrar. De, num golpe de imaginação, converter o enfadonho “país real” no país fictício da nossa conveniência e convicção.

Imaginando, podemos ignorar que os nossos subúrbios são armazéns de fealdade, isolamento e ostracismo mediático, e que albergam vidas tão duras quanto invisíveis. Esquecer que o interior, o mundo rural e as ilhas se esvaziam, envelhecem e esmorecem, e que os seus poucos filhos vão se ausentando, ou convertendo em minorias culturais e civis. Podemos convencer-nos de que em Portugal se circula, sem martírio, de cadeira de rodas em qualquer cidade, ou que os transportes bastam à autonomia dos velhos, dos doentes, ou de todos os que não podem conduzir. Podemos simular que a paixão animal não é, também, uma forma de sensacionalismo, ou um bálsamo e uma projeção da solidão urbana de um país com a natalidade mais exígua e tardia do Mundo. Podemos ficcionar que Portugal não é dos países com melhor registo, e leis, em matérias de não-discriminação, enquanto nos flagelamos pelo país fascista, racista e colonialista de que tanta ideologia precisa.

Depois disto, pouco faltaria. Com a peneira do sol, da praia, e da gastronomia, disfarçamos a nossa envergonhadíssima pobreza e improdutividade, bem como o divórcio descarado entre o nosso rendimento e o da restante União Europeia. Com o consolo moral do porreirismo, inventamos que nenhuma destas nossas derivas e aflições se atribui a uma falta colectiva de empenho ou engenho, ou mesmo dessa coisa prosaica que é o dinheiro. Com o elogio da nossa tendência para o delírio, sonhamos que em Portugal se ganha decentemente, que os impostos e custo de vida são justos, e que as principais aspirações de quem ainda não emigrou são a variedade da representação política, a escaramuça quanto a se o PSD é de esquerda ou direita, e a proibição das palhinhas.

Aqui chegados, podemos fingir que as pessoas, como os políticos, se galvanizam com os jogos de directório e bastidores, e apreciam a disposição maquiavélica e torcionária do seu voto.

Podemos até fingir, como na Madeira, que uma votação pírrica habilita o CDS-PP a propor, e o PSD a aceitar, que um representante de 6% dos eleitores seja Presidente da Assembleia Legislativa Regional, e agradecer que o Estatuto e a Constituição se tenham dobrado num gabinete como nunca se dobrariam nas urnas.

Podemos, no fundo, tratar as eleições como uma formalidade que, de quatro em quatro anos, adjudica a ordem das senhas para o pronto a servir dos órgãos de soberania, para descrédito e demérito do mandato popular.

Fingir, felizmente, podemos sempre.

Mas depois não se admirem.

* Os números são de uma publicação de Nuno Gonçalves Poças no Facebook, e foram extraídos pelo autor do site do Ministério da Administração Interna.