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Picardias

Neste Portugal à moda dos Joes que por aí andam a verdade até está bem à vista. Não serve é de nada

Há coincidências que não lembram ao diabo! Eis-me às voltas nas aulas a dar a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, o tal do “Fernão, mentes? Minto!”, e salta para a ribalta Joe Berardo, o comendador madeirense que, entre os serviços prestados à Pátria portuguesa, deixa um calote de cerca de mil milhões de euros que, nas suas contas peregrinas, não é dele mas das empresas dele.

Perguntar-me-ão o que é que a obra literária mendesiana tem a ver com a obra de esperteza “berardiana”. À primeira vista, pouco ou nada. À vista mais profunda, tudo ou quase tudo.

Na verdade, para quem já não se lembra ou sabe, Mendes Pinto foi um pé rapado que andou viajando 21 anos pelo oriente, logo após os descobrimentos, na mira de, à semelhança dos seus contemporâneos, enriquecer à custa da exploração do mundo novo recém descoberto pelos seus predecessores, verdadeiros heróis à maneira clássica cantados na épica de Camões. É, aliás, no confronto com Os Lusíadas que o relato autobiográfico do viajante quinhentista, coetâneo do grande poeta, ganha maior interesse na medida em que surge como o contraponto do texto camoniano, expondo a faceta menos heroica dos portugueses no além mar.

Se Camões anunciara já, timidamente, o descalabro dos conterrâneos do seu tempo, espécie de novos ricos nascidos do manancial de riquezas que os descobridores potenciaram, Mendes Pinto confirma-o, mostrando ao mundo, e a nós, leitores do futuro, que, afinal, o português de herói apenas tem a picardia de saber desenrascar-se quando cheira a dinheiro. “Sair eu [...] muito rico em pouco tempo, que era o que eu mais pretendia que tudo”, confessa o próprio Mendes Pinto, desta feita não na qualidade do português do império que Camões mitificou, mas de herói pícaro que, como a designação deixa adivinhar, não é mais do que uma espécie de Zeca esperto que, oriundo de um berço humilde, vive de expedientes, a maioria dos quais escusos, para sobreviver e/ou enriquecer. É, se preferirmos, o Sancho Pança do oriente que, de pés bem assentes na terra, mostra quanto pode o vil metal na condição humana, sobretudo na portuguesa. Sim, porque de heróis pícaros está a nossa história cheia. Principalmente a mais recente, cujo grau de visibilidade desmarcara o anti-herói em direto e em tempo real. Basta ligar o canal da Assembleia da República e assistir a comissões de inquérito como a de Joe Berardo, um herói pícaro na aceção da palavra que trocou o oriente por um Portugal de vacas gordas, compadrios e servilismo aos poderes económico e financeiro, onde códigos de honra são letra morta e nada mais. Um Portugal onde a pilhagem é subtil e sofisticada, onde quem detém algum tipo de poder procura encher os bolsos e não hesita em favorecer os que o melhor o servem para que também eles possam fazer o mesmo. Em suma, um Portugal à Joe Berardo que, entre gargalhadas insultuosas, soma e segue.

E se em Peregrinação a verdade surge moldada pelo imaginário romanesco de Mendes Pinto, neste Portugal à moda dos Joes que por aí andam a verdade até está bem à vista. Não serve é de nada. Porque, a bem dizer, a picardia dá jeito(s) a muita gente.