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Os pastorinhos

Uma cabritada, ou um borreguinho assado é sempre notícia, e assim se faz a tradição

A recorrência, e modos, em que o tema “gado na serra” vai surgindo na enevoada agenda madeirense personifica bem a baralhação mental e oportunismo à medida, igualmente típicos da exígua dialética social desta ilha.

Umas vezes é tema supra-científico, só ao alcance de eruditos, que, quando aflitos, apelam à plebe, em nome da sua sapiência. É então que o gado se vê como indesejado, porque a “personificada ciência” se deixa absorver pela plebe. Fica um pouco mais confuso e difícil quando outras “eminências científicas”, suportadas por conhecimento mais moderno e, eventualmente, mais holístico, argumentam em contrário. Esta coisa de medir competências científicas tem que se lhe diga e ficamos na mesma, sem saber se a minha é maior que a tua. Eu disse (primeiro e) mais vezes que era cientista do que tu e há mais pessoas a dizer que eu sou investigador do que a dizer isso de ti.

Segue-se a passagem ao social e o relevo do papel da actividade, na tradição, cultura e história da terra. Que seria da paisagem sem as ovelhinhas, mesmo sem que se veja o castiço do pastor a deambular pela cidade, eventualmente disfarçado de funcionário, por obrigação profissional, na vida real?. Há até quem consiga ir ao baú das memórias louvando o arejamento do solo dos tempos dos laboriosos e saudosos porcos silvestres. Com menos de meia dúzia de argumentos para lá e para cá, conclui-se da necessidade de adicionar outras variáveis e, nada melhor que o rendimento, o inexistente, e, principalmente, o potencial. E é ver o futuro iogurte e o queijo a desfilarem ao lado de teares do futuro imbricando fios de lã que só o nosso gado, seguramente superior, será capaz e produzir. No topo da cereja, não faltará a contribuição como sumidouro de dióxido de carbono, esquecendo as equivalências em metano e contaminação bacteriana dos solos. Uma verdadeira nuvem, endémica, exclusiva deste laboratório vivo, caso de estudo, no centro do universo. Nada que não se pudesse resolver com uma simples “contagem de espingardas” em jeito de sondagem eleitoral, não fora o inigualável sabor da patuscada e da notícia associada. Outra exclusividade desta terra: uma cabritada, ou um borreguinho assado é sempre notícia, e assim se faz a tradição.

No centro de tudo estão os pastorinhos, afinal, pessoas a quem, supostamente, devemos alguma adoração. Está-nos no sangue, pastorinho é sinónimo de adoração. Nesta história toda, e baixando à terra, de vez em quando, lembro-me das finanças, impostos, rendimentos, licenciamentos, enfim, aquelas coisas pequenas que nos fazem lembrar que estamos vivos e que somos meros seres mortais. Não sei se alguma Comissão de Protecção de Dados nos deixaria saber quantos são afinal os pastorinhos com actividade licenciada e enquadrada administrativamente ou se este é um sector off-shore dada a sua ligação ao espiritual. A partir dessa simples questão poderíamos tentar saber se a actividade segue as normas administrativas e fiscais, tal como todas as outras e, pelo caminho, se há algum outro tipo de pastorinho que se esquece de as fazer cumprir. Até lá, os pastorinhos, os das ovelhinhas e os das gentes, conduzem os seus rebanhos ao sabor dos ares frescos e dos ventos das conveniências. Ao contrário dos famosos, os nossos pastorinhos, infelizmente, persistem na ausência de visão e, alguns deles, com a agravante de se terem tornado mudos quando durante toda a vida foram verdadeiros papagaios sobre a matéria.