>
Artigos

O poder em tempos de cólera

Escrevo no dia em que o meu país celebra a mais certa revolução de sempre: a revolução que nos devolveu a liberdade e que nos deu a democracia.

Escrevo no dia em que, justamente, se celebra a mais importante data da nossa história recente e comum. Escrevo no dia em que muitos defenderam, em alto e bom som, a suspensão das comemorações, e em que outros primaram pela ausência.

Sei que escrevo também num tempo diferente que tanto nos tem desafiado e vai continuar a desafiar. Mas escrevo com a certeza de que as conquistas de Abril devem continuar a ser respeitadas. Não só a liberdade como valor indiscutível e inegociável, mas a liberdade que traz a igualdade e a fraternidade, a justiça e a equidade, o bem comum e o respeito por um sistema que garanta todos os preceitos constitucionais do nosso país, que respeite os órgãos eleitos e que não transfira para grupos e corporações uma legitimidade democrática que não é deles por direito.

Queria acreditar que estes tempos difíceis que estamos a viver nos fizessem mais lúcidos, mais justos, mais certos. Mas conjugo este querer num pretérito imperfeito que, por sua vez, reflete o medo e a quase certeza de um futuro imperfeito no que deveria ser o tempo depois deste tempo estranho e trágico.

Escrevo num tempo em que todos nós sabemos já os desafios e as dificuldades que vêm aí. Desafios e dificuldades que vão atingir as famílias, a economia, a vida tal como a conhecemos.

Por saber isto, é que me inquietam os sinais que começam já a surgir. E estes sinais são claros: no meio da tempestade há gente que não se distrai, gente que continua a definir as suas ações pela agenda política e não pelo interesse comum. Gente que continua a ter como prioridade a manutenção dos privilégios da casta política a que pertence, disfarçando esse programa com uma aparência de defesa da coisa comum e da democracia enquanto serviço a todos.

O vírus pode matar, mas parece que não matará o caciquismo que tem mantido o poder nas mãos dos mesmos, e, por essa via, os problemas por resolver e a inexistência de um rumo certo e capaz de ver além da agenda política do momento.

Como autarca, preocupa-me que num tempo que vai exigir de todos nós medidas concretas de apoio à população, persistam teimosias de não entregar aos municípios as verbas que são deles por direito, como é o caso do IRS, e que se prefira antes entregar verbas, sem garantias de transparência e eficácia, aos braços armados do Governo, como são as associações disto e daquilo e as ditas casas do povo.

Ou seja, alimenta-se a mão amiga que sustenta o poder e deixa-se de mãos caídas as instituições eleitas com o voto do povo. E, pelo meio, esquece-se que se gere o dinheiro alheio e que as dívidas às autarquias são realmente dívidas à população.

Faz-se papel de música das instituições democráticas, porque, no fundo, o que interessa é manter as aparências e as mordomias de uns tantos.

Depois, disfarça-se tudo com uma aparência de democracia e de populismo barato, fazem-se umas medidas avulsas que não chegam a todos mas que fazem boas manchetes, e deixa-se que estes tempos de cólera sirvam, também eles, a agenda política do momento. Não interessa ajudar as autarquias, não interessa dotar de meios quem representa o povo, principalmente se quem representa esse povo não é alinhado com o sistema.

O poder em tempos de cólera continua a ser igual a ele próprio e não se distrai nem se distancia do seu programa e da sua agenda política. Pena que o poder em tempos de cólera mantenha o distanciamento social em relação àqueles que deveria servir, para confinar-se e manter vivo o vírus da prepotência e do ilusionismo barato da baixa política.

É pena que não se aprenda.

Fechar Menu