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O mato nos olhos deles

A tribo quer, como o Estado no passado, condicionar o intelecto e a vontade da sociedade civil

O New York Times não publica mais cartoons. A honra da desfeita coube a António, um cartoonista português. O Times publicou um desenho em que Trump, de bengala, óculos escuros, e kippah, é conduzido por um cão-guia com a cara de Netanyahu, Primeiro-Ministro de Israel, com a estrela de David pendurada na coleira.

Bombardeado com críticas, o jornal reconheceu, em editorial, que o cartoon era “claramente anti-semita”, e “indefensável”. Patrick Chapatte, o cartoonista residente, admitiu que lhe custava arrumar as tintas por um cartoon que nem era dele, e “nunca devia ter sido publicado no melhor jornal do Mundo”. Aproveitando a deixa, o director executivo acabou com os cartoons políticos diários na edição internacional, alinhando-a assim com a edição doméstica.

O Público não publica mais certas opiniões.

A honra da desfeita coube a Maria de Fátima Bonifácio (”MFB”), uma historiadora. O jornal deu à estampa um seu artigo de opinião, onde, a propósito dos sistemas de quotas, tecia considerações sobre raça e cultura incompatíveis com uma pessoa cuidadosa e instruída.

Em editorial, o Público admitiu que o discurso era racista e apelava ao ódio, e que essas linhas dominavam o propósito de crítica à política de quotas ao ensino superior que conduzia o artigo. O jornal cometera, pois, um “erro de análise e avaliação”, que presumivelmente se dispensa de repetir.

Sendo radicalmente distintos, os casos são paramétricos. As opiniões de António e MFB têm lógicas diferentes, mas a lógica de quem as exclui é a mesma.

O espaço mediático democrático quer-se livre. As regras e autoridade deontológica dos jornais e dos seus reguladores servem para arbitrar as franjas dessa liberdade e garantir critérios racionais e uniformes de publicação. Um texto, um desenho, podem engavetar-se se forem incorrectos, irrelevantes, gratuitamente insultuosos para uma pessoa. No caso da opinião - e aqui dependendo da linha editorial -, a incorrecção e a irrelevância podem muito bem correr por conta de quem escreve.

O que se começa a passar é diferente.

Os novos zelotas não se opõem a que António, ou MFB, pensem o que pensam. Opõem-se a que esse pensamento se tenha tornado público. Idealmente, um jornal de bem não imprime aquelas coisas. A expressão daqueles pensamentos, normais - ainda que censuráveis - até há menos de uma década, é hoje considerada à margem da lei, seja por razões religiosas ou soberanas, seja por ser associada a discurso de ódio.

Estas tribos, que se julgam inimigas, são na verdade siamesas. Ambas preferem a instituição, no espaço público, de um pensamento hegemónico, devidamente inoculado contra desafios aos seus pressupostos e conclusões.

Os devotos da política externa de Israel ou dos EUA, os activistas anti-racismo, todos os grupos de pressão mais ou menos organizada que são hoje o pão e a vida das redes sociais procuram então o mesmo: pureza.

O seu inimigo não é o pensamento de António, ou o pensamento de MFB. O que os incomoda é a ideia de que o bem comum não é algo de predeterminado ou anunciado, mas o resultado de processos democráticos, regrados e transparentes de concorrência e adjudicação de princípios políticos, limitados por balizas largas e consensuais. O que os irrita, enfim, é o pluralismo, esse conceito subversivo de que o outro também tem direito a pensar, comunicar, e participar na vida pública. Por isso não atacam as ideias do adversário, mas a sua legitimidade para as exprimir. Não aspiram a ganhar a discussão, aspiram a precludi-la, como um menino que leva a bola para casa quando lhe recusam a posição que quer.

Se o desejo de dominar o outro é universal, o século XXI tem por esse princípio um apreço particular. Nas democracias liberais, a tribo reservava-se, tradicionalmente, aos jogos, aos concertos, aos comícios - àqueles acontecimentos em que o indivíduo, de forma episódica, sã e catártica, se deixava levar e escapava aos deveres da cidadania. Nos jornais, vigorava um sentido de lealdade e desporto institucional que protegia quem pensava. A imprensa guardava as portas do templo mediático, e sempre distinguia entre uma acusação séria e uma indignação pessoal.

Já não é assim. A tribo quer, como o Estado no passado, condicionar o intelecto e a vontade da sociedade civil. Não recorre à força pública, mas quer dominá-la, e aos seus meios, pelo poder dos números, da intimidação, pela desproporção dos seus rótulos e pela persistência da sua reacção.

Pensar e escrever livremente, na aldeia global, não é por isso tão diferente de pensar e escrever na aldeia medieval. É arriscado, é perigoso, e condiciona, consciente e inconscientemente, quem ainda se atreve a fazê-lo.

Esta higienização do espaço público tem custos horríficos. Além do erro, do arbítrio e do simples aborrecimento, perde-se o arrojo típico do indivíduo. Eça de Queiroz, nas suas Cartas de Inglaterra, legou uma correspondência jornalística com curiosidades, juízos morais e impressões empíricas - sobre judeus e alemães, egípcios e ingleses, muçulmanos e católicos - que hoje talvez não vissem a luz do dia. A liberdade e o desembaraço com que escreve são condição da verdade e do presságio daquelas palavras, que adivinharam um início de século tão sangrento e revolucionário como o que efectivamente existiu.

Hoje não é assim. Não há mais cartoons, não há mais opiniões. As tribos castigam quem vê o mato no seu olho.