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Música do Coração

O menino deixou então o colo da mãe e correu. Correu atrás dos outros meninos e brincou

Era um menino a quem a vida, tantas vezes incompreensivelmente insensível e cruel, retirou a possibilidade de ouvir e de falar. Não o conheço e não sei o seu nome, mas fiquei tranquilo quando percebi que era feliz na troca de olhares ternurentos e no diálogo gestual que mantinha com a mãe. Um diálogo que denunciava uma cumplicidade perfeita. Eu, que aprecio a cumplicidade genuína, aquela que está acima de tudo, sem mais nada. A cumplicidade sem palavras, que coloca as coisas mais simples de uma relação fora do alcance do mundo.

Fixei-me naquele momento e, tal como acontece perante outras injustiças, revoltei-me em silêncio. Não creio que a vida tenha o direito de ser tão injustamente cruel com uma criança ou com os seus pais. Não tem mesmo. Mas se a própria vida não respeita os direitos mais sagrados!...

O menino deixou então o colo da mãe e correu. Correu atrás dos outros meninos e brincou. E voltou para os braços da sua mãe, suado. Pediu água, bebeu sem parar e correu de novo, correu para os outros meninos que dançavam ao som de uma música animada, e dançou. As crianças deram as mãos e dançaram, felizes. Sempre felizes. Sem limites e sem barreiras. Naquele momento percebi que não dançavam a mesma canção, mas havia ali uma harmonia perfeita. Aquele menino tinha música no coração e dançava como os outros. E todos dançavam a mesma música. A vida não terá dado àquele menino a possibilidade de ouvir a canção dos outros meninos, mas não lhe podia tirar algo mais profundo: a música do seu coração.

Naquele menino senti que não existe injustiça que vença a música do coração. Não são necessárias palavras para mensagens importantes. E aquele menino, que nem sequer sabe quem sou, lembrou-me, naquele momento, que a vida nem sempre é justa, mas, mesmo nas circunstâncias mais incompreensíveis, teremos algo que ninguém nos pode tirar. Que a música do coração nos faça dançar como aquele menino e que vença sempre, para além da vida cruel.

Ao José Nelson Vieira, amigo e Homem do bem, deixo, neste momento de separação física, um abraço eterno, o meu respeito e a minha homenagem.