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Duplas (des)conformidades

Muitos particulares vêem-se forçados a empenhar (ou ter penhorado) o seu património durante anos a fio

1.No sistema judicial português vigora, desde há alguns anos, a regra da “dupla conforme.” De acordo com a mesma, e salvo honrosas/limitadas excepções, não são passíveis de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (ou para o Supremo Tribunal Administrativo) as decisões dos Tribunais da Relação (ou dos Tribunais Centrais Administrativos) que confirmem integralmente as decisões proferidas por Tribunais de 1.ª instância.

Assim, na prática, as partes dos processos judiciais perderam o acesso, até então quase pleno, a 2 dois graus de recurso, e viram as decisões dos Tribunais de 2.ª instância assumir carácter tendencialmente definitivo.

Como fundamentos para esta opção legislativa/processual – que, no fundo, representou uma opção pela máxima “two wrongs make a right”, em detrimento de “two wrongs don’t make a right” – invocaram-se, entre outros, os seguintes fundamentos: os recursos dilatórios interpostos pelos – malandros – dos Advogados e as excessivas pendências dos Tribunais Superiores, muitas vezes sobrecarregados com questões “menores.”

Ora, é verdade que, com esta medida, o número de recursos e “o tempo” dos processos diminuíram, bem como que os Juízes Conselheiros passaram a ter maior disponibilidade para se dedicarem aos processos verdadeiramente importantes/dignos.

Mas a que custo?

Desde logo, à custa das garantias e direitos das partes. No limite, com prejuízo da qualidade e certeza das decisões judiciais, bem como da imagem do Sistema Judicial.

Com efeito, e sem generalizar – pois existem muitas excepções –, constitui sentimento comum dos operadores judiciários que os Acórdãos proferidos pelos Tribunais de 2.ª instância se tornaram mais “ligeiros”, denotando uma tendência para confirmar, sem grande sentido crítico, e com o “conforto” da irrecorribilidade da decisão, as Sentenças vindas da 1.ª instância.

Por outro lado, esta mesma irrecorribilidade, com o consequente aumento do valor/peso de certas decisões judiciais, veio dar maior consistência aos rumores – entretanto confirmados em casos concretos – da existência de práticas de corrupção no seio do Sistema Judicial.

Pelo que, contas feitas, perderam os Cidadãos e perdeu a Justiça.

2. O Presidente da Câmara Municipal do Funchal, vendo-se confrontado com uma execução fiscal promovida pela Águas e Resíduos da Madeira, S.A., relativa a uma alegada dívida do Município, afirmou que “é de todo lamentável que o Governo Regional e a ARM pretendam substituir-se aos tribunais, utilizando a Autoridade Tributária para cobrar uma pretensa dívida que está a ser discutida em tribunal”.

É, de facto, lamentável, mas, infelizmente, é a regra no nosso ordenamento jurídico. Com efeito, qualquer contribuinte minimamente informado sabe que, quando está em causa uma dívida às Finanças, ao Estado e aos Municípios, unilateralmente criada/determinada pelos mesmos sem qualquer controlo judicial prévio, “primeiro paga-se, depois contesta-se.”

Assim, e por força da – legalmente inexistente e inadmissível – presunção de legalidade dos actos administrativos e tributários e dos superiores interesses do erário público, muitos particulares vêem-se forçados a empenhar (ou ter penhorado) o seu património durante anos a fio, sob pena de não se poderem defender de eventuais ilegalidades praticadas por entidades públicas.

Ora, pela minha parte concordo que, seja o credor quem for, os legítimos direitos dos contribuintes/munícipes objecto de execuções fiscais devem ser respeitados, bem como que as garantias processuais destes devem ser – urgentemente – revistas e ampliadas.