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Democracia e racionalidade

O ano político – e do entretenimento mediático – foi inaugurado com uma estreia ‘em lágrimas’ de uma popular apresentadora televisiva, agora com novo programa e noutro canal generalista, a receber, em direto, um telefonema do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, a “desejar-lhe muitas felicidades... (e) o mesmo sucesso que teve noutras fases”.

Mais uma vez, entrou em funcionamento, e com grande eficácia, a “política dos afetos”, das emoções/comoções, incarnada de modo exímio pela mais alta figura do Estado, e que mereceu logo por parte de um conjunto ampliado de comentadores ‘especializados’ (mas também nas redes sociais), primeiro uma intensa agitação e depois uma reflexão/comentário cívico crítico e admoestador. Acusado de “populismo”, quando o país tem problemas bem mais graves por resolver (e com consecutivas falhas do Estado), o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa viu-se obrigado a explicar o sucedido e a proceder de idêntica forma para com as outras estações televisivas e entertainers.

Todavia, não esqueçamos que em democracia a aceitação popular é indispensável para se atingir (e segurar) o poder, e depressa voltaram as já imortalizadas ‘selfies’, as reportagens nos órgãos de comunicação social cheias de emoção, com lágrimas ou sorrisos, gáudio/esperança ou inquietação/angústia... tudo pela disputa de audiência e a favor de alguém que conhece bem os segredos da popularidade e sabe o que o povo/eleitorado aprecia. É verdade que o populismo assuma diferentes características em diferentes continentes, mas há algo em comum: o facto de todos utilizarem intensivamente os meios de comunicação para fazerem chegar as suas mensagens à opinião pública e assim chegar (e conservar) ao poder.

Ora, na Região, e num ano que terá três eleições no calendário, há também candidatos que já puseram em marcha esta forma afetiva de fazer política, onde há um claro predomínio dos afetos em detrimento do conhecimento real dos problemas (e também da sua análise reflexiva e do apontar de soluções), desde os mais sinceros e legítimos, aos menos autênticos e leais. Avizinham-se, assim, tempos em que os políticos irão “encher o olho do eleitorado”, isto é, está já aberto um longo período de anúncios, promessas e/ou pseudocompromissos, inaugurações, um tempo de vacas gordas e “voadoras”, tudo planeado para ser consumado agora pois não poderia ter sido feito antes nem pode ser deixado para depois.

Por outras palavras, está aberta a época de ataque (e sede de) ao poder e ninguém parece preocupar-se em questionar o que virá depois. A única coisa que importa, como diria José Saramago, “é o triunfo do agora”, na medida em que está tudo imbuído de uma “cegueira da razão”.

Porém, 2019 começou também com a notícia de que Portugal desceu no ranking mundial da democracia (provavelmente, poucos lhe deram importância). De acordo com o Índice da Democracia elaborado pelo The Economist Intelligent Unit, em 2018 nenhum dos países da Europa Ocidental considerados “democracias com falhas”, onde se inclui Portugal, conseguiu passar a “plena democracia”, e o nosso país baixou da 26.ª para a 27.ª posição, sendo ultrapassado por Cabo Verde, o Estado lusófono agora mais bem classificado.

Perante este dado, e em género de síntese, temos agora o perfeito entendimento de que a moralização e responsabilização dos eleitos perante os eleitores continua por cultivar, que a separação entre política e negócios, o efetivo combate à corrupção, o aprofundamento da democracia participativa, o acréscimo da credibilidade das nossas instituições, a alteração/reforma do sistema eleitoral, a formação de uma diferente e renovada atitude pautada pelos valores da ética, da transparência e de confiança, etc., tudo isto permanece suspenso e protelado no tempo, sendo que a nossa “madura” democracia é no presente cada vez mais dominada por interesses particulares antagónicos ao Bem Comum.

A distância, a crítica e até desprezo pela classe política (e sistema democrático vigente), que as recentes sondagens de opinião atestam, mostram que os cidadãos sentem que algo muito sério se verificou nos últimos anos no nosso país, pois temos continuado a viver num sistema circular e ruminante à volta da ideia de poder (e seu controle), um sistema (e tempo), aliás, que parece entrar em vias de esgotamento e que precisa de uma maior perceção e racionalização do conjunto da vida portuguesa, europeia e universal.

Em suma, se Portugal não estivesse ainda confinado a uma política que se resume a resolver os problemas do dia a dia, a satisfazer interesses de bastidores e constrangido às restritas/privadas elites de sempre, e se os cidadãos assumissem uma cidadania mais ativa, participativa, informada, reflexiva, responsável e empreendedora, o país teria já dado um salto qualitativo em termos dos desafios da convergência real e sustentável para com a Europa e teria um programa/visão estratégica (e reformas) virado para um futuro coletivo de esperança. Contudo, infelizmente não é assim. Nos últimos tempos continuamos a olhar não para onde é preciso olhar, mas para onde nos mandam e deixam olhar. Convertemo-nos em meros espetadores e persistimos em não querer ser atores, pois julgamos que a política não é um assunto de todos e que deve haver ‘incontestáveis’. Sintetizando, continuamos a adiar uma renovação que é de importância vital e a hipotecar o nosso futuro!