Deixem(-nos) ensinar!
Só entre 2006 e 2017, houve cerca de 40 reformas curriculares no ensino básico e secundário
Nota prévia. É a primeira vez que componho para este matutino regional alguns caracteres sobre a atividade profissional que exerço. Intentei fazê-lo com total liberdade face a hierarquias patronais e organismos sindicais, pois tenho perfeita consciência de que não exprimo o sentimento de uma classe e que vivemos num tempo de opiniões plurais (sendo a minha cimentada em observações empíricas concebidas nas quase 10 escolas do 2º e 3º ciclo e secundário em que exerci atividade), onde a verdade única é uma ilusão, melhor, não existe.
I. Sou professor há cerca de 20 anos e, enunciam as fontes consultadas, que só entre 2006 e 2017, houve cerca de 40 reformas curriculares no ensino básico e secundário. Desde os programas das disciplinas, os tempos de aula, metas curriculares, a avaliação dos alunos – para não falar dos modelos de avaliação de desempenho dos docentes – foram tudo domínios sucessivamente alterados pelos diferentes ministros da Educação, sendo que alguns nem vigoram o prazo de uma legislatura e ergueram-se apenas para deixar uma marca que não é (ou nunca foi) avaliada, e que tarda pouco a desaparecer. Infelizmente, o experimentalismo em Educação foi – e ainda é – palavra de ordem!
II. Hoje, o quotidiano da sociedade portuguesa, os alunos e o mundo são muito diferentes de há 20 anos. Contudo, o nosso modelo escolar vem do século XVIII – parece que até vem de antes – e continua a ter imensas dificuldades em se adaptar à realidade. Nas salas de aula, os instrumentos de trabalho do professor são, em muitos casos, os mesmos do século XIX e XX: apenas um quadro negro e giz (alguns manuais até estão desajustados aos ‘novos’ programas. No entanto, os alunos manipulam (sem autorização, conforme consta de muitos Regulamentos Internos) instrumentos tecnológicos altamente evoluídos e interditos ao uso no processo de ensino-aprendizagem. Como é percetível, o intelecto e a criatividade dos alunos é agora moldado por outros modelos “sociais” e a escola não se adaptou ao novo, pelo que emergem, no presente, outras (e mais) dificuldades e complexidades, quer no ensino quer na aprendizagem. É urgente transformar o modo como se ensina – isto é um facto! – e as escolas têm distintos professores, mas muitas vezes são geridas por burocratas (que permanecem décadas a fio em cargos diretivos) e não por pedagogos, para não mencionar aqui um conjunto de políticas públicas implementadas no sector que foram (e ainda são) desastrosas.
III. Refere um relatório da OCDE (2018), onde é estudada a classe docente em Portugal, que a idade média dos professores em exercício é “preocupante” e uma situação que vai trazer vários “desafios”. Mais: os professores são cada vez mais velhos e o grave é que se assiste a uma falta de equilíbrio entre as faixas etárias, já que a proporção de jovens professores “diminuiu para menos de 1% do total”. Mas o mais inquietante é que “em 2015/16, apenas 18,1% dos professores tinham menos de 40 anos”, o que “poderá criar uma situação preocupante de falta de professores nas escolas”.
Ora, não foi preciso esperar muito. Já este ano, no decurso do mês de outubro, todos assistimos a sucessivas notícias que referiam que mais de um mês depois do arranque das aulas, “existem mais de duas mil turmas no país ainda sem professores a pelo menos uma disciplina” (e a Região Autónoma da Madeira não é exceção, na medida em que existe dificuldade em recrutar docentes para determinadas áreas do ensino). Por outras palavras, se o envelhecimento da classe docente é alarmante, creio que é imperativo nacional revitalizar a imagem social da profissão, torná-la respeitada, digna e com uma carreira atrativa, pois só assim poderemos aumentar os níveis de competência dos atuais profissionais e formar, com efetiva qualidade, as futuras gerações de portugueses, aquelas que serão as mais bem qualificadas de sempre, acredito. Sem bons e altamente qualificados professores, o país não terá grande futuro na 4ª revolução industrial que já está em andamento!
IV. Em julho de 2018, um estudo realizado em Portugal com mais de 15 mil docentes, aludia que mais de 60% dos professores portugueses sofrem de exaustão emocional, provocada por causas como a excessiva burocracia e a indisciplina dos alunos, o que explica o significativo desgaste da profissão. Mais interessante é que indica que os docentes mais velhos são os que mais sofrem de exaustão, com forte incidência nos profissionais com mais de 55 anos, e que todos os professores estão cansados. Há mais professores cansados do que professores em “burnout”, e isto devido à “extensão do horário de trabalho e a intensificação das tarefas dentro do horário de trabalho”. Dito de outro modo, a realidade concreta do dia-a-dia é um fator determinante para os baixos níveis de realização profissional dos docentes que se veem cada vez mais confrontados com uma “intensa falta de autonomia”, programas das disciplinas extensíssimos, reuniões estéreis que servem por vezes apenas para cumprir calendário, pouca influência nos currículos, na dinâmica e na gestão da escola. Atualmente, ser professor é conformar-se com a realização de um trabalho altamente vigiado, repetitivo, por vezes ineficaz perante as múltiplas e diversas necessidades/carências (e solicitações) dos alunos e da sociedade, despersonalizado, pois o número de alunos é ainda excessivo nas salas de aula, desmotivante e esgotante, em que o professor (cada vez mais desrespeitado e desautorizado) é considerado como mero funcionário de um qualquer estabelecimento de educação, pior, como um operário (cada vez mais alvo de agressões verbais e físicas) que trabalha numa “linha de montagem” para produzir em série – e para a melhor classificação possível nos rankings das escolas básicas e secundárias do país – e cujo desempenho (e não ‘mestria’ ou autoridade ‘intelectual’) é avaliado no final de cada ano letivo.
V. O diagnóstico está feito, e por vários especialistas. Entretanto, e classe docente emagrece no número de profissionais em atividade e debilita-se a cada dia que passa. A menorização dos professores e dos agentes educativos é um dado adquirido e, nas salas de aula, onde devia “brilhar o gosto pelo ensinar e aprender”, o exercício do pensar, da descoberta, a criatividade e inovação, a convivência saudável e respeitadora, a partilha e a amizade, ao invés, reina a competição e a rivalidade em busca das melhores notas e médias que possibilitem o objetivo primordial: o acesso ao curso desejado na instituição universitária ambicionada.
O professor, aquele que, como refere o físico alemão Albert Einstein, deveria fazer sentir aos seus alunos que “aquilo que lhes ensina é uma dádiva preciosa e não uma amarga obrigação”, vive um confronto diário entre as expectativas e a realidade da profissão que abraçou e para a qual se formou/credenciou académica e profissionalmente. Deixou se ser alguém que ensina e age em prol da transformação social, que semeia sonhos, utopias, que orienta caminhos, desperta talentos, alimenta esperanças e que, à sua escala, constrói os cidadãos de amanhã e assume compromissos com o futuro, revisitando o passado, mas exercendo a sua ação no agora/presente. Condensando, hoje, em alguns corredores e salas de professores de muitas escolas, nas pequenas conversas informais e em surdina, ouve-se, com frequência, um só e ingénuo pedido: “por favor, deixem-nos ensinar!”.