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Da crise da democracia

A palavra já foi uma arma, mas não nos tempos que correm. Está de tal modo degradada, corrompida, que é mais veículo de destruição do que de exaltação

As democracias no mundo inteiro experimentam um profundo mal estar e estão hoje em retrocesso global. No entanto os valores democráticos continuam atractivos, inclusive no espaço privado. Mais do que uma questão de pertinência das instituições ou de adesão aos valores, a democracia é primeiramente uma questão de competências práticas, especialmente no domínio da palavra e das relações com o outro. Constatamos que todos os meios sociais são hoje em dia afectados por um verdadeiro deficit do ponto de vista da fala democrática. Outros savoir faire mais arcaicos-astúcia, sedução, dominação, etc, ocupam o lugar das competências em falta. Na origem dessa carência está a dissonância entre valores e práticas e é fonte de violência social.

A palavra já foi uma arma, mas não nos tempos que correm. Está de tal modo degradada, corrompida, que é mais veículo de destruição do que de exaltação graças ao predomínio massivo das chamadas redes sociais e do uso que certos políticos fazem delas.

Esta desfasagem, entre valores democráticos e as práticas da palavra que deveriam se corresponder encontra-se no âmago de uma questão de ordem mais geral: o homem está à altura de suas pródigas ideias? Seu pensamento não está sempre adiante das possibilidades de sua acção? Estamos condenados a ser anjos em nossos ideais e continuar demónios nas nossas práticas? A idealidade de nossa imaginação está definitivamente comprometida pela materialidade daquilo que somos? A tentativa pós-moderna pelo virtual, que para alguns resolveria o problema, não diminui a relevância dessas questões. Muito pelo contrário. Não estamos condenados a uma visão do homem incapaz de se erguer à altura da prodigalidade de seus ideais. Essa ascensão implica, porém, renunciar ao princípio da utopia. Conhecemos catástrofes criminosas que muitas vezes constituem o resultado final.

O ideal democrático é no entanto, detentor de uma verdadeira radicalidade. Esta se encontra acima da direita ou da esquerda, do conservadorismo ou do modernismo, do liberalismo ou do socialismo, que podem tanto encarná-la como se afastar dela. Quando sua aplicação é exigida, pressupõem importantes transtornos, que estarão ainda por vir em grande parte, que implicam até o nosso mais intimo ser.

Neste sentido, proponho a noção de “subsidiariedade democrática” Ela poderia constituir um ponto de apoio mediante a renovação das práticas democráticas que nos permitiria talvez evitar a grave crise possível de acontecer caso perdêssemos a confiança dos valores e em sua capacidade efectiva de mudar nossas vidas.

Este longo alcance da referência democrática é proveniente de reforma radical de uma actividade humana essencial que ela propõe: a tomada de decisão. A democracia é uma maneira de dizer aos homens que eles podem decidir as questões que lhe dizem respeito, em todos os aspectos de suas vidas, que eles podem, graças à palavra, fazê-lo em conjunto, livremente e em pé de igualdade.

Como eu aprendi, a democracia poderia ser o lugar de inspiração e de mobilização de energias. No entanto, ela é hoje a sede de numerosas frustrações, que podem conduzir a uma posse de projecto, até mesmo de desejo. Um sintoma frequentemente associado à crise da democracia. Ele se exprime pelo desencanto, pela melancolia e pela “depressão” que ela presumivelmente suscitaria. A democracia teria por alguma lei mecânica desconhecida, como afirma Annie Kriegel, “perdido em intensidade o que ela ganhou em extensão”?

Isto se traduz no desinteresse pelo processo eleitoral e na “despolitização”. Uma outra é a defeção individualista. Este problema é bastante real. É preciso interpretar o diagnóstico. E aqui existem duas questões.

A primeira é a questão de confiança em si, em suas próprias capacidades de ser um democrata efectivo, de ter uma opinião, defendê-la, de escutar realmente a opinião dos outros e ocupar o seu lugar nos processos de decisão. Trata-se aqui de um problema de base. A desconfiança em relação aos eleitos e à representação política em geral poderia muito bem ser, nesse espírito, uma projecção de desconfiança que muitas pessoas têm sobre elas próprias no que diz respeito à sua capacidade de tomar parte no processo democrático.

Digo isto com a experiência feita primeiramente nas Sedes (1973) e depois, a nível internacional, em muitos movimentos da Igreja Católica como o Movimento Internacional de Intelectuais Católicos, Pax Romana, ou a Justiça e Paz onde presentemente milito.

A Segunda questão está ligada ao facto de que o sentimento depressivo está na maioria das vezes associado à incapacidade de se projectar no futuro, de formular um projecto ou de sustentar sua realização. As democracias actualmente custam a se projectar no futuro e dão assim uma impressão recorrente de “sociedade bloqueada”. Nos dois casos, prevalece uma grande dúvida sobre as competências disponíveis. A falta de confiança em si e a pane do projecto remetem talvez directamente para o deficit real ou suposto dos savoir faire e das competências democráticas.

Mais de 45 anos depois da Revolução que nos devolveu a liberdade, o País acordou com uma polémica que partia da premissa “ E se suspendêssemos a democracia?” Se nos parece, agora, a verdade é que pode bem resumir a nossa crescente falta de confiança na qualidade da democracia em Portugal.

Afinal, o que esperam os portugueses da democracia? Que ideia têm dela? Que causas contribuíram para a baixa popularidade do regime? Como lidar com as consequências e traçar um novo rumo para o regime democrático em Portugal. A pouco mais de um mês para as eleições regionais na Madeira não podemos descurar que é importante à defesa da Autonomia como valor democrático e que o grande perigo vem da postura populista do candidato socialista que por absurdo defende uma ideia centralista de poder. Neste caso o obstáculo principal à democracia é talvez mais profundo e mais grave do que o simples produto de uma relação de força entre a esquerda e a direita porque desta incompetência todos nós seriamos vítimas...

Se o coração da democracia é de facto uma certa relação com a palavra, talvez seja a incompetência em tomá-la de uma certa maneira, em relação com o princípio de igualdade que constituía o freio principal para que ele bata correctamente.

Em suma, para defender a democracia na Região Autónoma da Madeira é indispensável que nas próximas eleições regionais o discurso populista não vingue e para isso, é necessário que o PSD-M e o CDS-M unam forças para barrar o caminho a um populismo serôdio...

Temos a nossa parte de responsabilidade pelo que acontecerá deste ponto de vista. Mas, pelo menos, não podemos dizer que não tivemos escolha.