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“Bon dia Mário, mercé per triar la nació catalana”

Foi com estas palavras que fui recebido em 2004 pelo Director do Hospital Sant Joan de Déu. Na altura não as entendi inteiramente mas agora encontro nelas um sentido. Durante o tempo que trabalhei em Barcelona, vivenciei uma cultura vibrante, produto de uma sociedade heterogénea, dona de uma vivência mundana, orgulhosa de si mas sem os tiques de altivez de outras regiões de Espanha. Um amigo catalão descreveu-ma como um balanceado cocktail, sem excesso de nenhum dos seus diversos ingredientes.

O independentismo catalão não é novo. A sua língua e cultura foram exaltadas pelo movimento Renaixença no século XIX. O domínio da Catalunha foi alternando entre o centralismo de Madrid, a posse francesa e a autodeterminação, nomeadamente na Nação Catalã de 1931-1937. Esta foi abolida por Franco que acreditava serem a fome e a cadeia as melhores formas de subjugar o povo catalão. A evolução natural só ocorreu com o Estatuto Autonómico Catalão, negociado pacificamente com Madrid em 2004. No entanto, a expectativa deu lugar à desilusão pelo seu chumbo pelo Tribunal Constitucional, diz-se que pressionado pelo PP. Estava lançada a crispação e o início do designado Procés, promovido ao mais alto nível da governação catalã. Ele não é consensual e consiste na criação de um Estado Catalão, inclui doutrinação, seja com a televisão pública TV3, pela imposição do Catalão nas escolas, uma ampla legislação autonómica e o referendo. Assim chegamos à declaração de Independência e a estas eleições.

Os dois lados da barricada estão razoavelmente tipificados por vários estudos sociológicos. Os independentistas recebem o apoio maioritário dos jovens, em especial dos diversos movimentos do ensino, das elites culturais e da comunicação social catalã, dos municípios rurais e dos centos históricos das cidades, têm grande preponderância na classe média e média-alta, em especial nos nascidos na Catalunha. Os constitucionalistas pró-Espanha predominam nas regiões suburbanas, nas classes menos abonadas, têm o apoio incondicional do patronato e o apoio tímido da Igreja. Acima de tudo, o seu apoio reside nos dois milhões de espanhóis que nasceram noutras regiões e que emigraram pelos empregos do “boom” económico catalão.

Nestas eleições os catalães sabiam bem ao que iam. A politização da pré-campanha durou pelo menos seis meses. Houve milhentos debates, televisivos e de taberna. Ninguém ficou indiferente. Mas a inépcia de Rajoy, a fartura em bastonadas da Guarda Civil no referendo de Outubro e o incómodo contraste entre a justiça espanhola, dura, e a justiça belga, condescendente com Puigdemont, transformaram as eleições regionais num verdadeiro referendo. Madrid proibiu o referendo de Outubro e acabou tragando outro bem mais doloroso.

Politicamente, a divisão existe: os três partidos de cariz regional, o liberal PDeCAT, de Puigdemont, a ERC de esquerda e o bloquista CUP são piamente pró-independência e esta “geringonça” somou agora 48%; O PP de Rajoy e os populistas do Cidadadanos (partido “Easyjet” como é conhecido) são decididamente pró-Espanha e valeram 30%. Com 14%, os socialistas defendem uma reforma da constituição mas, ao alinharem decididamente com Rajoy, muitos dos seus autarcas desfiliaram-se ou demitiram-se, optando pelo independentismo. Restam os “ex-comunistas” do CatComú com 8%, cuja cabeça de cartaz é Ada Colau, a presidente de Barcelona, que defende o referendo da autodeterminação catalã mas não apoia a via unilateral do Procés. O resultado deu 70 deputados aos independentistas, 57 aos partidos pró-Madrid e 8 à formação de Ada Colau. Ganhou Puigdemont e perderam Rajoy e o Rei de Espanha. Enfim, manteve-se o cocktail mas agora um pouco mais alcoólico.

Voltei a Barcelona, a última vez nesta campanha e reencontrei o meu amigo galego, Xaime e a sua filha, Agnès, nascida já em Barcelona. Ele, saudoso da sua terra natal e de continuar a ser espanhol. A filha, que fala catalão, idealiza construir um novo país e é voluntária no PDeCAT. Esta é a nova realidade sociológica que o Procés criou. Acredito que a independência acabará por não acontecer mas é preciso que, humildemente, Madrid perceba que na península há mesmo outras “nações” que não o país Portugal. E reconheça que a Catalunha tem 16% da população de Espanha e produz 20% da sua riqueza, mas só recebe 9% do bolo orçamental, de modo que há acertos a fazer e respeito a ter com os catalães. O exemplo da Jugoslávia é doloroso e deve estar presente. A tots un feliç 2018!