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Aventura e rotina

Na Madeira, Freyre apaixonou-se logo “por uma das populações e por uma das culturas mais sugestivas do complexo luso-tropical de civilização”

Em Fevereiro de 1952, regressando ao Brasil de uma viagem patrocinada pelo governo português, o sociólogo Gilberto Freyre passou pela Madeira registando em diário, publicado um ano depois sob o título “Aventura e Rotina”, algumas impressões sobre a ilha e as suas gentes. Homem notável de cultura, Freyre discorreu com prodigiosa imaginação sobre os mais variados temas criando o conceito de “luso-tropicalismo”. Neste definia o que havia de comum – e talvez de superior... – nas civilizações de origem portuguesa que medraram nos trópicos graças à assimilação das culturas da “África morena ou árabe” e da “África negra” – invenção que lhe granjeou tanto a simpatia do Portugal salazarento quanto a antipatia do antifascismo de vistas curtas. Entre uma e outra coisa – hoje ambas enterradas – sobreviveram as perspicazes intuições e a colorida prosa do brasileiro.

Na Madeira, Freyre apaixonou-se logo “por uma das populações e por uma das culturas mais sugestivas do complexo luso-tropical de civilização”. Interessado, fundamentalmente, “pela gente simplesmente gente e pelas casas simplesmente casas”, o sociólogo descobre na face de ambas – gentes e casas – um estreito parentesco com as suas congéneres brasileiras: um certo arabismo. Nas gentes este teria resultado da presença frequente de piratas árabes que “emprenhando mulheres brancas, deixavam em ventres portugueses ou nórdicos possíveis árabes ou mouros”; nas casas, “nessas velhas residências da Madeira, com suas casas de prazer e os seus mirantes”, alguma coisa lhe evocou a “voluptuosidade árabe”, à qual os ingleses teriam acrescentado “o conforto anglicanamente profilático com que procuram viver nos climas quentes”.

No que respeita às casas, nada de fundamentalmente novo, ou errado, há a apontar às considerações vagas do sociólogo. No que respeita às gentes, não me atrevo sequer a comentar: os testes de DNA, desconhecidos em 1952, vieram por em causa muitas das ideias feitas sobre raça do século passado. Onde Freyre intuiu, com inegável perspicácia, o amor que o português em geral, e o madeirense em particular, tem pelas Quintas – “esse sabor sensualmente estético e um tanto místico que para outros temperamentos têm outras Quintas: a Quinta Sinfonia ou a Quinta Avenida” – foi nestas palavras:

“Não há criação portuguesa que seja, mais do que a Quinta, uma expressão estética, política, mística, e não apenas prática, do apego do homem à terra; ou da sua saudade da terra [...]. É para a Quinta que já possui – ou que sonha possuir – que se volta não só a sua saudade como aquilo que os ingleses chamam expressivamente ‘day-dreaming’. É decerto através desse ‘day-dreaming’ [...] que a Quinta portuguesa se tem aperfeiçoado no decorrer do tempo, numa rara, raríssima flor de técnica agrária e de estética de paisagem, não sei se diga rural, tal a sua tendência para suburbana.” Que diria Freyre se lhe fosse hoje dado a ver o Funchal suburbano com as suas “quintas” sem árvores em lotes de 400 m2? Poderia ele imaginar que esse ‘day-dreaming’, um dia, se iria transformar num ‘nightmare’ colectivo?