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Às Cegas

Há formas de trabalhar com as quais não me identifico. Tenho dificuldades em aceitar que, na gestão de património natural de extraordinário valor, único no mundo, se atue de forma pouco profissional, entrando por experimentalismos irresponsáveis, e agindo à pressa e às cegas. Quanto maior é o valor em causa, maiores terão de ser também as cautelas a seguir. As ações sobre desequilíbrios que queiramos atenuar devem ser precedidas de estudo e experimentação em meio controlado, além de uma implementação gradual que avalie os seus efeitos. A pressa é inimiga da perfeição.

Aquando dos grandes incêndios de agosto de 2010 nas serras da Madeira, que afetou gravemente a cordilheira central e queimou a maior parte do Parque Ecológico do Funchal, na ânsia de mostrar trabalho feito, o Governo Regional, à altura, foi com muita pressa intervir no terreno. Entre outras coisas graves, autorizou e financiou, com fundos comunitários, um projeto de intervenção na zona onde ocorria o único núcleo de Sorveira da Madeira (Sorbus maderensis), junto à estrada para o Pico do Areeiro, do lado contrário ao Parque Ecológico do Funchal. Porque a zona havia sido afetada pelos incêndios, e julgando que estava tudo perdido, as touças destas pequenas e raríssimas árvores, exclusivas da ilha da Madeira, foram arrasadas pela maquinaria pesada que, com as cinzas ainda quentes, rasgou o solo para construir acessos e patamares nesse projeto de “reflorestação”. Passados 8 anos, no lado contrário, dentro do Parque Ecológico do Funchal, onde alguns exemplares dispersos desta espécie também ocorriam, e, apesar de terem sido queimados, ninguém neles mexeu, as sorveiras recuperam e até já conseguem florir e frutificar.

Na Deserta Grande, no Vale da Castanheira, ocorre a Tarântula-das-desertas (Hogna ingens), uma das maiores aranhas-lobo do mundo, que pode atingir a impressionante dimensão de 12 centímetros. Esta espécie não ocorre em mais parte nenhuma do mundo e estima-se a existência de pouco mais de 4000 indivíduos adultos. Até bem pouco tempo ocorria em todo o Vale da Castanheira, 83 hectares, mas agora existe apenas em 23 hectares. A sua área de distribuição, em pouco tempo, reduziu-se em mais de 70%. O quê que aconteceu? Com a eliminação total dos coelhos, outra espécie invasora, a Alpista (Phalaris coerulescens), proliferou e está a destruir o habitat da Tarântula. Para tentar combater esta planta, em 2010, experimentaram o uso do fogo, que se descontrolou e acabou por afetar grande parte do vale, provocando uma mortandade na população de Tarântulas. Agora estão a experimentar o uso de herbicida, aplicado diretamente na planta, para tentar controlá-la, mas pouco se sabe sobre isso... há assuntos que não interessa explicar publicamente talvez porque quem nos governa não acredita que tenhamos inteligência suficiente para os compreender.

Os Murganhos (Mus musculus), pequenos ratinhos, uma espécie muito diferente das ratazanas, têm sido combatidos em áreas protegidas como as Selvagens e as Desertas. Nas Selvagens foram mesmo já eliminados por completo, mas na Deserta Grande as tentativas até ao momento ainda não alcançaram esse desiderato. Entretanto, descobriu-se há alguns anos que os murganhos já existiam na ilha da Madeira muito antes da chegada dos Portugueses. Estudos genéticos e datação de fósseis encontrados na Ponta de São Lourenço provam que existem cá há pelo menos mil anos, e que não são originários de Portugal continental, mas sim do norte da Europa, levantando-se a hipótese de que tenham chegado cá com os Vikings (!?). Esta nova informação levanta a dúvida legítima de se os Murganhos das Desertas (e os já eliminados nas Selvagens) não teriam uma origem pré-povoamento e, consequentemente, se já não existiriam novos equilíbrios estabelecidos. Estudos genéticos com os murganhos das Desertas poderiam esclarecer esta dúvida.

Gostaria de referir mais exemplos, mas não tenho, aqui, espaço para tal. Não posso é terminar este artigo sem louvar o cuidado e a paciência de quem tem estado envolvido no projeto de conservação dos Lobos-marinhos nas Desertas, e que, graças a um trabalho cauteloso e consistente, vai dando os seus frutos.