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A tragédia nacional

A insurreição contra Neto de Moura é bem parecida à que se dedica à corrupção. É o reflexo de uma vida colectiva que dispensa (e não tolera) escrutínio.

O País comoveu-se com as decisões judiciais do Desembargador Neto de Moura. Não reservou, porém, qualquer comoção para a cultura que as permite e tolera, nem com o regime que o alçou a um Tribunal Superior.

Apesar de decidir como decidiu, Neto de Moura não decidiu isolado. Foi, apenas, o relator de acórdãos proferidos por unanimidade pela Relação do Porto. Neto de Moura não foi castigado. Foi, apenas, admoestado, com uma pouco mais que cândida advertência do Conselho Superior de Magistratura. Apesar de o ter solicitado, Neto de Moura não foi imediatamente afastado. O Tribunal responsável pela decisão só aceitou transferi-lo porque – palavras suas – a confiança na Justiça “começava” a ficar abalada. Neto de Moura não foi, em suma, afectado na sua carreira por decisão alheia. Deixou, agora, de julgar casos de violência doméstica. Porém, o seu afastamento não foi ditado pelo seu desempenho, mas antes por pedido seu – um gesto de resto louvável e criterioso.

Num País com uma réstia de vergonha e de amor-próprio, partia-se, daqui, para uma pergunta simples – como é possível?

E chegaríamos, talvez, a uma conclusão incómoda. A de que o Estado, no afã de assegurar a independência dos juízes, consagrou a sua inimputabilidade. Que a magistratura não se tornou, apenas, imune à interferência obviamente deletéria dos restantes poderes do Estado, mas também impermeável a padrões de avaliação, responsabilidade, e disciplina profissional que a boa Justiça exige e a sociedade reclama. É legítima a preocupação com os desvarios machistas de um Juiz. Mas esse desvio, sendo grave, é secundário face à tolerância e à escolta concedidas ao erro judiciário e à displicência na função.

Não se discute a conduta dos magistrados, que muito fazem com o pouco que têm. Não se discute o seu carácter, conhecimento e formação - e que estúpido seria, agora, generalizar. Mas deve, talvez, discutir-se a bondade das suas regras e incentivos.

Segundo o Relatório Anual do Conselho Superior de Magistratura de 2017, existem 1.787 juízes em efectividade de funções. Destes, 57 integram o Supremo Tribunal de Justiça, e 388 os Tribunais da Relação.

Entre estes 1.787, 369 foram avaliados. Neste grupo, infelizmente reduzido, 172 receberam a classificação – máxima – de “Muito Bom”. 91, de “Bom com Distinção”. 63 foram avaliados com “Bom”, 14 com “Suficiente”, e 2 com “Medíocre”, sobrando umas tantas avaliações pendentes.

Em Portugal, portanto, 47% dos magistrados judiciais são “Muito Bons”, e 25% “Bons com Distinção”. Um “Bom” Juiz estaria, já, entre os 25% pior classificados da nossa magistratura.

Em sede disciplinar, o cenário é igualmente sugestivo. Em 2017, aplicaram-se 32 penas disciplinares, e apenas quatro implicaram castigo mais severo do que a multa.

Não é, colectivamente, a imagem de uma cultura de exigência, ou sequer de transparência. Estes números explicam, em parte, como Neto de Moura chegou onde chegou.

Essa Justiça branda com os seus, molenga na correcção e pouco enérgica no incentivo, onde a sanção é administrada por pares compreensivos e a avaliação dispensada por tutores generosos, pode, de facto, e contra a probabilidade, ser competente. E pode não se rever – muitos magistrados decerto não se revêem – naquela outra Justiça subjectiva e arcaica, onde o amparo na Bíblia (e logo na parte do adultério) se confunde com fonte de Direito, com um exotismo argumentativo, ou com o homem médio passado a limpo. Sucede que uma não se destrinça da outra. A consciência de classe e o “porreirismo”, na sua inocência, obstam mesmo à distinção entre sentenças lapidares e sentenças da pedra lascada. E uma Justiça assim estagnada não é independente – é refém de um dever constitucional por cumprir.

O sistema pede, então, alguma introspecção. Equilibrada e séria. Mas pede-a.

Disto, porém, não se fala. Os alicerces não abalam. Acossado pelas tochas e forquilhas das redes sociais, pelo oportunismo dos políticos, e pela sátira dos humoristas, Neto de Moura suportará sozinho a sua expiação, como se fora a causa do problema, e não um seu sintoma. Como se o seu pensamento não descrevesse costumes consolidados, a filosofia dos cafés, ou da boca pequena. Como se não fosse, também, censurável o poder que não se eleva, nem se diferencia, das paixões individuais que o subvertem.

É mais confortável assim. Sempre foi.

A insurreição contra Neto de Moura é bem parecida à que se dedica à corrupção. É o reflexo de uma vida colectiva que dispensa (e não tolera) escrutínio. Ataca-se Neto de Moura para que não se ataque mais nada. A sociedade assenta neste engano colectivo e tácito, que por prudência e instinto de preservação não se discute. Fala-se de Justiça, mas não se muda a Justiça. Aliás, fala-se da Justiça para evitar que ela mude. A cruzada não se destina, no fundo, ao aperfeiçoamento das instituições. A algazarra, só por si, alivia e consola a consciência.

E a vítima? A vítima desempenha, aqui, um papel tão claro quanto aviltante. É o pretexto narrativo da indignação. Uma personagem dramática, abstracta, cujas dores se tomam como um destino histórico, a prosseguir sem exame e sem reforma. Não há, pela vítima, nada a fazer senão comover-se. Não subestimemos esta inacção. É ela a tragédia nacional.