Artigos

A Sueca, o Madeirense, e o Irlandês

Mesmo tomando Thunberg pelo seu valor facial, como símbolo de uma geração e de uma causa meritórios, esta vassalagem não augura nada de bom

A SuecaGreta Thunberg aportou em Lisboa esta semana. Foi recebida na Doca de Alcântara por uma comitiva onde figuravam vários deputados - entre eles o Presidente da Comissão do Ambiente - e o Presidente da Câmara de Lisboa. O Ministro do Ambiente não compareceu, mas justificou-se por correspondência, dirigindo à adolescente uma carta em português e em papel timbrado do Governo.

Mesmo tomando Thunberg pelo seu valor facial, como símbolo de uma geração e de uma causa meritórios, esta vassalagem não augura nada de bom.

Os deputados, o Ministro e o Presidente da Câmara, se estão tão alinhados com a visão para o planeta da senhora Thunberg, podem concentrar os seus poderes na tomada daquelas medidas apocalípticas que os profetas do clima julgam adequadas para evitar o apocalipse.

Se, como boa parte do planeta, testemunham este espectáculo com uma dose saudável de cepticismo, dispensam a hipocrisia.

O Instagram ainda não é um órgão de soberania.

O Madeirense

Não percebi boi do que se passou com o Mercado de Natal, mas percebi o suficiente para perceber que nunca se devia ter passado. À distância, o madeirense parece, por vezes, pequenino. A distância por vezes ajuda.

O Irlandês

O Irlandês, de Martin Scorsese, vê-se belíssimamente no Netflix, e vê-se que foi concebido para ser visto aí.

O filme é a história de Frank Sheeran (Robert de Niro), um camionista e um veterano de guerra que, nos anos 50, caiu nas boas graças de um criminoso local ao roubar umas carcaças de carne de vaca do seu camião frigorífico. É então recrutado por um grande chefe da Máfia local, Russell Bufalino (Joe Pesci), para trabalho mais pesado.

Sheeran, o Irlandês, torna-se “pintor de casas” - pense-se em paredes tingidas a sangue - e depois guarda costas e braço-direito de Jimmy Hoffa (Al Pacino). Hoffa é líder do maior sindicato de camionistas dos Estados Unidos, e uma figura política chave no seu tempo. Carismático, poderoso, popular, desapareceu em 1975.

O enredo desenvolve a três tempos: as recordações de um Frank idoso, sentado num lar, e duas camadas de flashbacks: a primeira numa viagem de carro que faz com Russel em 1975, e a segunda num novelo que acompanha o início da sua carreira,

O que impressiona, em Scorsese, é o domínio ancião de uma tecnologia e de um meio tão juvenis. Nas suas sucessivas prolepses e analepses, as três horas de filme parecem imitar o processo de televisão em streaming, onde o espectador retrocede e avança consoante os impulsos mais altos da preferência, mas também os mais baixos da distracção e da interrupção. De Niro novo e De Niro velho param, como nós, para contemplar a beleza e a glória, mas também as interferências corriqueiras que fatalmente determinam também a vida.

Claro que o Irlandês foi também criticado por ser antiquado, e prestar tributo a uma cultura masculina velhota, de violência, em que as mulheres desempenham um papel apenas decorativo.

A crítica é tão injusta quanto inculta.

O silêncio das mulheres não é ali um acidente ou uma distracção, mas um recurso narrativo.

A história do Irlandês é sobretudo a da vertigem do poder, do intercâmbio prático, e de princípio, entre os domínios da política e do crime organizado, e de como isso corrompe e contamina comunidade e família.

Nesse mundo, o de Sheeran, Buffalino e Hoffa, o silêncio é, entre homens, uma forma de cumplicidade e de força, um código forjado no pressuposto tácito de uma amizade que a comunicação só estragaria. Omertá.

O silêncio das mulheres - em particular, o de Peggy, filha do Irlandês -, porém, é nele um juízo e um castigo.

No filme, as mulheres não se calam por terem sido censuradas. Calam-se para censurar. As razões, pouco evidentes à partida, passam reincidentemente algures, noutro tempo, noutra parte do filme. À noite, em casa, revemos com clareza porque as mulheres se calaram, e a cada repetição a mudez nos surge mais grave, mais definitiva e mais virtuosa.

Se isto não é a vida é, felizmente, pelo menos a arte.

E a 5 paus por mês.