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A Herança para além da materialidade

O grande desafio do presente estará, precisamente, na reflexão em torno da imaterialidade do património

“Mistérios do Funchal” é uma obra desconhecida de Ciríaco de Brito Nóbrega, jornalista e escritor madeirense, redator do Diário de Notícias desde abril do ano 1907 a março de 1927. A Imprensa Académica, sob a coordenação literária do historiador Nelson Veríssimo, traz agora ao conhecimento do público esta obra, inserida na Coleção “Ilustres (Des)Conhecidos”, tendo aproveitado a cerimónia de apresentação do livro para lançar um debate oportuno, transversal e muito interessante, numa conferência subordinada ao tema: “O valor da Herança: (Re)pensar a sociedade à luz da dinâmica da nova ordem mundial”.

Tendo a honra de ter integrado o painel de oradores, e porque creio que essa é também a intenção do autor da obra, devo partilhar aqui algumas breves, mas importantes, reflexões que assentam, essencialmente, num conceito amplo de herança, enquanto património, material ou imaterial, ativo ou passivo, suscetível de perdurar ou subsistir para além da morte. Suscetível, precisamente, porque nem todo o património se transmite efetivamente depois da morte. Embora não pretenda abordar aqui a perspetiva jurídico-legal, não posso deixar de referir que o próprio ordenamento jurídico português prevê a possibilidade de repúdio da herança. Significa isto que, não obstante a grande proteção que confere aos herdeiros legitimários (cônjuge, descendentes, ascendentes), a quem reserva uma parte da herança (não permitindo, ao contrário do que acontece noutros países, a deserdação e a possibilidade de disposição livre e ilimitada de todos os bens), o nosso regime jurídico prevê a possibilidade de repúdio da herança por parte dos seus beneficiários. Assume-se, deste modo, que o que está disponível para transmissão pode não consubstanciar um verdadeiro benefício ou valor para o destinatário desse património, admitindo-se, então, a possibilidade de se evitar a sua transmissão por morte, mediante o repúdio.

Retomando a reflexão mais ampla, eventualmente já num quadro axiológico, diria que a herança deve ser vista, não só na perspetiva daquilo que se recebe, mas, também, daquilo a que, conhecendo-se, podemos ou devemos saber renunciar. É numa reflexão crítica, profunda, capaz de renunciar a quadros ultrapassados, que a sociedade caminha e evolui, de uma forma equilibrada e consistente, para novos paradigmas. Todos temos, em cada momento, nas nossas mãos, o poder e o dever de decidir, em consciência, o que devemos e o que não devemos perpetuar, e essa é uma decisão que, pelo modo como pode condicionar o futuro, carece de fundada ponderação.

Diria que o grande desafio do presente estará, precisamente, na reflexão em torno da imaterialidade do património ou em torno desse património imaterial, cultural, literário, político, religioso, ético, moral, histórico, quer seja individual ou geral. Na decisão, consciente e responsável, quanto àquilo que, desse património, queremos fazer perdurar. Na nossa capacidade de assumir a herança, essencialmente, como aquilo que podemos e devemos preservar e manter ou construir sobre as nossas raízes mais sólidas, para além de toda a materialidade.