Análise

Os outros heróis

Eleger as personalidades que marcaram o ano é uma prática antiga e recorrente, num procedimento subjectivo, guiado pela notoriedade e pela exposição mediática dos candidatos. A grande maioria das escolhas até pode ser justa, mas será sempre limitada.

Por cá rendemo-nos a José Tolentino Mendonça, figura ímpar da sociedade portuguesa, não só pela carreira meteórica conseguida exclusivamente pelo seu valor, no interior da Igreja, mas também pela sua vertente literária e educativa. Tolentino tem um extenso grupo de admiradores que o idolatram. Pela sua generosidade e pela palavra. A Capela do Rato, em Lisboa, era demasiado pequena para albergar a envergadura da sua mensagem. Foi assim anos a fio. Merece, por esse conjunto, as honrarias que lhe têm sido feitas. Mas não terá sido a sua elevação a cardeal o motivo que presidiu às homenagens recentes na Região? Foi.

A ostentação de um título, qualquer que ele seja, sempre inebriou a sociedade madeirense. Há um fascínio pela aparência que suplanta a dimensão interior. Como escreveu o padre José Luís Rodrigues na sua página de Facebook “seria muito mais bonito e interessante, se tivesse sido homenageado antes de ser cardeal e que fosse essencialmente pela sua qualidade literária e pelo seu percurso teológico. Não foi. Tudo vai revelando o quanto somos pobres e que corremos pela fachada e pelo que enche os olhos”.

A dimensão do poeta madeirense responsável pelos arquivos do Vaticano é superior à mentalidade reinante, como ficou patente nas suas palavras de agradecimento, mas não deixa de ser paradigmática a postura da sociedade e dos políticos que lhe colocaram a medalha ao peito nas vésperas de 2020. Políticos que fizeram fila para ficar com uma fotografia do cada vez mais que provável futuro Papa da Igreja Católica. Imagens que depois foram colocadas nas redes sociais e replicada vezes sem conta, como se de uma espécie de troféu se tratasse. Esta é a comunidade que se move pelo impulso mediático e pelo momento, e que infelizmente medita pouco e não reconhece os heróis anónimos. Aqueles ousam fazer sem pedir nada em troca. Os que andam à margem das notícias e do mediatismo fácil, mas que contribuem de forma grandiosa para a felicidade humana e para o bem-estar dos outros. Falo dos voluntários de diversas áreas, dos que estão à cabeceira dos doentes nos hospitais, do vizinho que cuida da velhinha que mora sozinha, do padre que tira do seu próprio bolso para acudir a uma emergência social. Exemplos não faltam. De gente simples, pobre, lutadora e grandiosa. Desses raramente é rezada história.

2. Uma nova década arrancou e com ela a esperança de uma vida melhor para uma Região a braços com problemas estruturais há tempo demais. Os diagnósticos estão feitos e refeitos. Saúde, mobilidade, turismo, demografia e emprego são as áreas que continuam a merecer especial atenção. É cansativo estarmos a crescer economicamente há 80 meses, como frisa sistematicamente este governo, e termos tantas necessidades em sectores fundamentais, tantos jovens sem condições laborais e com pouca esperança no futuro, e idosos sem família nem amparo. Para que servem estatísticas favoráveis se o essencial não funciona devidamente e se continuamos com injustiças sociais gritantes? A sociedade que correu para a fotografia com o cardeal na Assembleia Regional tem de ser mais exigente, mais presente e mais interventiva, porque sem pressão nenhum destes problemas será resolvido.