Análise

Os convívios na Quinta

Sabemos que o poder tem a característica de inebriar a maioria dos seus protagonistas. Uma delas provoca a ilusão de que é imutável. Os políticos trabalham muito para a eleição, mas depois esquecem-se de que estão sobre escrutínio e que têm de dar explicações sobre as suas decisões. Em democracia é assim que funciona. A vertigem do poder, como brincou António Guterres, justificando o desmaio em público, no início das suas funções como primeiro-ministro, abrange a generalidade da classe política, como é bom de concluir pelos casos de justiça e de polícia que varrem o país, envolvendo um número considerável de autarcas e de pessoas com ligações partidárias, da esquerda à direita.

Numa intervenção pública, na semana passada, o antigo Presidente da República, Ramalho Eanes, afirmou que a corrupção é uma “epidemia que grassa pela sociedade” e isso em parte deve-se não só a uma “cultura de complacência” mas também a um sistema partidário que escolheu a via do “encastelamento”, onde “o mérito foi substituído pela fidelidade partidária”. Basta estarmos atentos ao que se passa em nossa volta para concordarmos com o diagnóstico do respeitado general.

Por cá têm gerado celeuma os convívios realizados na Quinta Vigia, que reúnem empresas e grupos profissionais. Não há mal nenhum o poder ter um relacionamento saudável com os grupos privados. Antes pelo contrário. As empresas têm de ser acarinhadas e estimuladas na criação de riqueza, no aprofundamento da Autonomia e no fomento do emprego. O Governo Regional não pode viver de costas voltadas para o tecido empresarial. Mas não é isso que está em causa nas festas promovidas na residência oficial do presidente do Governo. Principalmente quando elas acontecem em ano eleitoral ou quando envolvem funcionários públicos. Que diria Miguel Albuquerque se iniciativas idênticas tivessem lugar em São Bento, em Belém ou nos Paços do Concelho do Funchal? O presidente já tem muitos anos de prática para saber que, em política, o que parece é. Os convívios são uma prática eleitoralista? São e não deveriam acontecer nas vésperas do acto eleitoral mais renhido da autonomia regional. O passado recente lembra-nos a pouca-vergonha instaurada pelo antigo presidente Jardim. As inaugurações, com festa rija à mistura, aconteciam até às 0 horas do dia de reflexão. Dinheiros públicos a rodos para celebrar o “desenvolvimento” da ‘Madeira nova’ e para lembrar ao povo qual o partido e qual o líder que tinham posto a Região “em marcha”. O equilíbrio e o bom senso não constavam no dicionário da prática diária, muito menos o respeito pelos partidos que também estavam na corrida eleitoral. Os tempos deveriam ter mudado. Os 43 anos de autonomia política que se cumprem amanhã mereciam isso. Um novo ciclo não se compadece com este género de promiscuidade, mesmo usando como justificação o ‘chapéu’ de uma governação próxima das pessoas. A “cultura de complacência” de que fala Ramalho Eanes tem de ser abolida de uma vez por todas. Os eleitores têm de ser mais exigentes com os detentores de cargos públicos, que são pagos pelos contribuintes. Poupem-nos a argumentos esfarrapados e a promessas desnecessárias. Os problemas reais das pessoas estão diagnosticados. Os problemas da Região são reais e não fruto da imaginação de ninguém. Debata-se, com seriedade, as soluções e não se mascare ‘convívios de proximidade’ com sessões de pura sedução político-partidária. Primeiro o jogo tem de ser jogado de forma limpa. A festa chega depois.