Análise

“Dizes-me até amanhã...”

1. A vida é curta. Mas pouco fazer para torná-la duradoura e digna, e assim antecipar o desfecho que nos aguarda, configura irresponsabilidade e crime. Se há certeza colectiva inquestionável é que um dia todos morreremos, mas a fatalidade não dispensa que tratemos dos vivos enquanto é tempo. Depois de desdramatizações despropositadas e algumas meias verdades, está oficialmente em vigor na Região o plano de contingência contra a nova estirpe do coronavírus, algo que para as autoridades de saúde da Região é mais mediático do que perigoso. “É algo que não é de muito risco”, assegura Herberto Jesus, apesar da OMS ter declarado estado de “emergência de saúde pública internacional”.

O plano existe e foi assinado a 28 de Janeiro. Mas na prática, onde estão as exigíveis salas de isolamento com renovação de ar, ou seja, de pressão negativa? E o treino para aplicar os protocolos e os procedimentos de segurança?

O plano até pode estar em vigor, mas tentem ir às farmácias. Peçam máscaras com filtro e desinfectantes.

Como nos podem mandar usar o que não há? E quando chegarem ao circuito comercial, a que preços esses produtos serão colocados à venda? Resta-nos um mísero número de telefone, talvez para ouvir do outro lado da linha a Saúde Pública regional a considerar manifestamente exageradas as notícias que dão conta da propagação do novo vírus.

2. A vida prega-nos partidas. Há quase dois anos, no Norte do País, eu e os meus participámos felizes num casamento de sonho, de amigos que traçavam o futuro como poucos, focados na construção do seu núcleo duro e nos frutos de um amor intenso. Esta semana, nasceu o lindo António, mas, por incrível que pareça, em pleno parto morreu-lhe a mãe que o trouxe ao mundo, a Ana Isabel. Que crueldade inexplicável é esta que transforma um momento de alegria inigualável numa perda irreparável e numa dor que nos sangra a alma. Não faltará coragem ao pai extremoso que, com ajuda daqueles que lhe querem bem, vai amar o filho e educá-lo com afinco, para assim também honrar a memória da mulher que perdeu tão cedo. Mas estará a sociedade transversalmente desperta para a exigência e nobreza de missões humanas desta envergadura? Será tolerante com o sofrimento, com as noites mal dormidas e com a eventual falha profissional? Fomentará a esperança e dará tempo a quem perdeu quem ama que cure tamanha mágoa?

3. A vida é ingrata. O José Salvador que o diga. Ele que através do jornalismo divulgou centenas de artistas, de projectos culturais e de eventos musicais, e que fez dos espectáculos vida, merecia muito mais de quem foi privilegiado com a sua dedicação. Talvez um derradeiro gesto, da estirpe dos espontâneos, puros e genuínos. Na hora do adeus, os que dele se despediram em São Martinho sentiram os efeitos da amizade virtual, por vezes interesseira e raramente solidária. Porventura os que faltaram e deviam lá estar terão optado por manifestar a eterna gratidão nas redes sociais e noutros fóruns, ou então esperar pela boleia de um qualquer voto de pesar parlamentar. Fica para a memória colectiva a dispensável hipocrisia, a que se junta o reles hábito de exibir homenagens que bem podiam ter sido feitas em vida.

Perdoa-nos Salvador. Não somos nada, mas ao menos podíamos ter cantado, em coro, uma das tuas preferidas:

“Dizes-me até amanhã

Que tem de ser, que te vais

Porque o amanhã, sabes bem

é sempre longe demais!”