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Só agora merecemos palmas?

Sou médico. Com muito orgulho. Um orgulho apenas proporcional aos sacrifícios, pessoais e familiares, que fiz ao longo da minha vida, para o ser. Pertenço a uma classe profissional tantas vezes catalogada de presunçosa, arrogante, prepotente, incompetente. Aqueles que entram tarde e saem cedo, que destratam os pacientes, que correm para a privada e ignoram o serviço público. Os principais culpados do estado da saúde em Portugal. Culpados do crescimento descontrolado das listas de espera, os seus maiores beneficiários. Os que ganham milhares e milhares de euros, num país de tostões. Genericamente, umas BESTAS.

Mas eis que um vírus tudo muda. De repente, tal como a velocidade de uma pandemia, as opiniões mudam. Deixam-nos passar à frente nos supermercados, oferecem-nos refeições, abrem as portas de suas casas para descansarmos. Correntes de solidariedade fluem nas redes sociais, batem-nos palmas das janelas e varandas às dez da noite. Somos os heróis dos tempos modernos. Deixámos de ser desconsiderados, desvalorizados, desrespeitados. Deixámos de ser umas BESTAS... passámos a ser BESTIAIS!!!

Mas será que os médicos em particular, e os profissionais de saúde em geral, mudaram assim tanto? Os médicos, enfermeiros, assistentes operacionais, técnicos de diagnóstico e terapêutica, administrativos, passaram a ser competentes de um dia para o outro? Passaram a ser amáveis, educados, caridosos, solícitos, empáticos, solidários com o sofrimento alheio, apenas por causa de um vírus? Os principais responsáveis pelo mau estado e vícios da Saúde em Portugal, são, agora, o seu garante? Foi necessário um vírus, uma pandemia, para nos darem valor?

Relatos dramáticos de outros países da Europa contribuem sem dúvida para essa mudança de comportamento e discurso. Estamos numa guerra contra um inimigo invisível, feroz, letal. Por toda a Europa multiplicam-se os casos de contágios e mortes, da falência de sistemas de saúde bem mais preparados que o nosso, da exaustão dos profissionais de saúde. Desespera-se por um tratamento, uma vacina. Estamos frente a frente ao inimigo, sabendo que nos vai atingir, temendo a força com que vamos ser atingidos.

Somos hoje a fina linha que separa uma ameaça global da população em pânico. Na linha da frente da batalha, não podemos deixar de pensar nas políticas de saúde seguidas nos últimos anos. A desorçamentação da saúde, a desorganização da formação médica, a destruturação das carreiras, a degradação das condições de trabalho e remuneratórias, que fizeram com que tantos e tantos profissionais abandonassem o serviço público, o país. Tantas vezes denunciado, outras tantas ignorado.

Agradecemos todas as manifestações solidárias da sociedade civil. Contrasta com o poder político, de quem ainda não ouvi uma palavra de conforto, respeito ou incentivo. Sentados nos seus gabinetes, longe da linha da frente, protegidos atrás duma câmara em videoconferências, debitam diplomas, decretos, orientações, mais rapidamente que a propagação do próprio vírus. Proíbem os profissionais de saúde de tirar férias - como se não as tivéssemos cancelado. Proíbem os profissionais de saúde de fazer greve - como se alguém se lembrasse agora de exercer esse direito. Obrigam os profissionais de saúde a exceder os limites de horas extraordinárias - quem as contabiliza agora. Forçam-nos a trabalhar e a colocar os nossos filhos em escolas comuns - começamos a discordar. Quererão em breve, a exemplo de outros países, que trabalhemos infectados desde que assintomáticos, sem condições mínimas de segurança, fazendo dos profissionais de saúde os mais atingidos por esta pandemia.

Agradecemos as palmas. Mas da próxima vez que os profissionais de saúde fizerem greve, lutando pelo Serviço Nacional de Saúde, pelo Serviço Regional de Saúde, gostaria também de as ouvir. Da próxima vez que forem denunciadas as carências da Saúde, gostaria também de as ouvir. Da próxima vez que forem reclamadas melhores condições salariais, progressão na carreira, protecção no âmbito de profissões de desgaste rápido, promessas de incentivos à fixação no serviço público (ainda por cumprir passados todos estes meses), gostaria também de as ouvir. Da próxima vez que o poder político nos rebaixar e humilhar com palavras como “Demitam-se!”, apenas por não concordarmos com acordos e negociatas políticas, por exigirmos para cargos de direcção técnica personalidades em quem confiemos, gostaria também de as ouvir.

Saímos de casa com medo. Medo de não voltar, forçados a uma quarentena obrigatória após contágio. Medo de voltar, colocando em risco os que amamos. Corremos riscos, muitas vezes sem pensar, por colocarmos os outros acima de nós próprios. Mas saímos, um dia após o outro, conscientes da nossa missão, do que jurámos defender: a saúde dos nossos doentes.

Mais do que as palmas, um pedido. Fique em casa!!! Pense em todos aqueles que gostariam de o fazer, mas todos os dias estão na linha da frente, por si, pelos seus, por todos nós.

Passado tudo isto, porque há-de passar, não posso deixar de pensar... voltaremos a ser BESTAS?

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