O Entrudo a Quaresma e o Pião

Era dia de entrudo, por aquelas bandas de Santana cheirava a malassadas e qualquer peça de roupa velha servia para disfarce, como também a própria ferrugem da parte exterior da panela de ferro, mascarava a cara de negro, (não havia racismo). Assim mascarados, perdiam a vergonha alguns garotos de irem pelas casas na pedincha duma malassada. Na rua, apareciam os primeiros piões da época, nas mãos da pequenada. Era o anúncio de que a quaresma estava à porta e era tempo de jogar ao pião. A saudade deste jogo parecia que então aumentava e, acontecia em alguns anos, que até se começava a jogar um pouco antes desta época, o que não era bom presságio, segundo uma superstição dos adultos. Pois quando a pequenada começava a jogar ao pião antecipando-se à quaresma, era augúrio de um ano infértil na agricultura. Dizia-se na aldeia;” oh!... os pequenos estão começando a jogar ao pião muito cedo, vai ser um ano de fome”.

Aquela ânsia de jogar ao pião, desencadeava tal efervescência que não havia garoto algum, que não andasse com aquele brinquedo na algibeira todo o santo dia para aproveitar toda a oportunidade que surgisse. Eu ficava com calos entre os dedos da mão direita, tantas vezes que me passava aquele cordel nas mãos para envolver o pião e pô-lo a rodar. Acabada a quaresma, parecia que nós enjoávamos aquele jogo, guardando o pião no seu esconderijo sem mais lhe tocar até ao ano seguinte.

Por vezes um pião não era suficiente para jogar uma época inteira, porque destruir o pião do adversário fazia parte das regras do jogo e isso dava prazer a quem o fazia. Desde que fossem cumpridas as regras a rigor todos aceitavam o prejuízo sem barafustar. Quando havia trapalhice para não cumprir as regras, aí a situação complicava-se e havia troca de mimos pouco afetuosos.

Ainda me lembro do meu primeiro pião que o meu pai me fez, tinha eu sete anos. Este foi feito de madeira de folhado (muito frágil esta madeira), nem durou uma semana. Eu era um principiante e eis que, um jogador exímio fez pontaria para o meu pião acertando em cheio abrindo-o ao meio, ficando este em duas partes. Eu chorei e queixei-me ao meu pai, mas nada meu valeu, ele ainda se riu, eram as regras do jogo.

Havia um jogo do pião que só tinha um perdedor no final e, mandava a regra que este expusesse o seu pião à mercê de todos os outros jogadores, para que todos eles, cada um por sua vez, aplicassem com a ponta metálica do seu pião, um então previamente estipulado número de furos, sobre aquele pião perdedor, deixando-o muito maltratado, daí a razão que os piões muitas vezes eram pau de pouca dura. A melhor madeira para construir piões era a de urze e a de buxo, por serem mais resistentes à porrada.

Como todos os jogos, aquele também dava vício, a tal ponto de transgredirmos as regras dos deveres a cumprir, quer na escola, quer em casa.

Os quinze minutos concedidos de recreio na escola, não eram suficientes para nós saciarmos o apetite daquele jogo e, então por nossa conta e risco excedíamos esse tempo, apesar de sermos advertidos pela professora que aquilo não podia continuar. E não continuou; ou melhor; continuou até ao dia, que a professora veio ao nosso encontro com o pau de marmeleiro na mão e, nas nossas pernas nuas ficaram os hematomas deixados por aquele pau, (era tempo de calça curta).

Os piões que tanto nos tinham custado a adquirir foram apreendidos pela professora.

Era um jogo só de rapazes. As miúdas entretinham-se jogando às pedrinhas à senhora e ao avião. Houve um ano em que eu guardei o pião após a quaresma, na ideia de voltar a ir busca-lo no ano seguinte como de costume, mas inexplicavelmente ao chegarmos de novo à quaresma, jamais me apeteceu jogar ao pião, certamente que foi uma rejeição da própria idade.

Voltei a pegar nele anos depois já quando adulto para ofertá-lo a uma criança.

Eis a cantiga do pião que o meu pai cantava: “Quando eu era mais pequeno/Eu jogava o meu pião/As meninas me pediam /Que lo botasse na mão”