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Crónicas

Crónica de um apagão e o Programa de Governo

1. Carta com um último pedido

[Crónica de um apagão]

Minha querida filha Joana, Não sei se escrever esta carta serve para alguma coisa. Talvez não. Mas há um momento na vida em que a gente, cansada de ver o tempo passar como uma estrada interminável e poeirenta, se senta numa pedra, tira os sapatos, e escreve, sem esperar resposta.

Vivi o 25 de Abril (recordo-me da multidão atabalhoada, dos cravos esmagados no peito das gentes e nos canos das G3, das palavras grandes e inúteis como bandeiras rotas), o fim da ditadura, o fim da Guerra Colonial, vivi os anos 80 como se fossem um intervalo alegre num filme que já sabíamos que ia acabar mal, vivi a queda do Muro de Berlim (os bocados de betão a cair como dentes podres de um velho doente), a queda do comunismo (ou do que restava dele), a Internet a invadir-nos as casas como uma humidade negra que não se vê mas sente-se.

Vivi as guerras do Golfo (aquelas luzes verdes no céu de Bagdade, como uma árvore de Natal para gente morta), vivi o World Trade Center a cair como se estivesse a ver um sonho a desfazer-se em pó, vivi a crise de 2008 (tanta esperança em tanto papel inútil), a troika a descer sobre nós como abutres gordos e preguiçosos, Trump a ganhar em 2016 e depois outra vez (as mesmas caras estupefactas, as mesmas lágrimas hipócritas), vivi a China a crescer como uma erva daninha num quintal abandonado, a pandemia a esvaziar as ruas e a encher os ecrãs de especialistas de fancaria, a América a fugir de Cabul sem honra nem glória, vivi as guerras na Ucrânia e em Gaza (tanta morte televisionada que já nem dói), e agora este apagão, este silêncio surdo, este vazio.

Tenho 64 anos. E o que queria, se é que ainda se pode querer alguma coisa, era paz. Só isso. Um bocadinho de paz. Não debaixo de slogans, não debaixo de projectos, não debaixo de revoluções inventadas por meninos mimados que nunca souberam o que custa levantar uma terra do chão.

Paz para ver uma árvore crescer. Para ver uma criança aprender a ler. Para adormecer sem medo de que o mundo acabe enquanto durmo.

Cresci a ouvir promessas. Paz, progresso, liberdade. Cresci a ver essas promessas serem queimadas uma a uma, como bonecos de palha num arraial triste. Acreditei, durante uns anos tolos, que era possível. Que podíamos ser melhores. Que o homem, essa besta velha, podia aprender. Aprendi que não.

O século XX deu-nos a ilusão de que tínhamos vencido. O século XXI mostra-nos, com uma crueldade minuciosa, que nunca vencemos coisa nenhuma.

E agora já não tenho paciência para estas festas tristes de indignação. Já não tenho paciência para os indignados profissionais que exigem tudo e não construíram nada. Já não tenho paciência para esta nova religião da catástrofe permanente, com os seus padres de telemóvel na mão e os seus evangelhos de plástico.

O que queria era isto: um ano de chuva mansa. Um ano sem gritos. Um ano de trabalho, de paciência, de silêncio. Um ano sem heróis de pacotilha e sem mártires de Instagram.

Queria poder ser velho como se era dantes: sentado num banco de jardim, com um casaco gasto, a olhar os netos a correrem atrás de pombos.

Mas não. O mundo novo não nos permite envelhecer. Só nos permite desesperar.

Deixo-te, minha querida filha, se tiveres paciência para ler isto, este conselho inútil (que também ninguém ouvirá): fujam da pressa. Fujam do barulho. Fujam dos profetas.

Procurem, onde puderem, um bocadinho de terra onde ainda cresça uma árvore.

Se encontrarem esse lugar, não o larguem nunca.

Por mim, fico por aqui. A ver o mundo a arder devagar, como um cigarro esquecido no cinzeiro.

E, de vez em quando, ainda sorrio. Porque, no fundo, já sabia.

Sempre soube.

Com um abraço resignado,

(assinatura ilegível)

2. Programa de Governo:

a Madeira, o Estado e a Farsa da Autonomia

Diz-se que a Madeira vive um dos seus melhores momentos económicos. Que cresce. Que baixa o desemprego e sobe o PIB. O Governo Regional, com o ar vaidoso de quem se penteia antes de ir ao espelho, apresenta o seu programa como um milagre de equilíbrio: boa gestão, boas contas, boas intenções. É mentira.

E é mentira desde o princípio porque o dito “Programa” nem sequer responde às perguntas mais básicas que qualquer documento político com pretensões a sério deveria enfrentar: quem faz, quando faz, onde faz, como faz e, pior ainda, por que faz. Não há cronogramas. Não há custos. Não há responsáveis. Não há prioridades. É um fraco rol de intenções, redigido como se o Governo vivesse numa bolha onde bastasse declarar vontades para que a realidade se curvasse.

Primeiro, as finanças. O Governo gaba-se de saldos orçamentais positivos. Reduziu a dívida, mas não o peso do Estado. Cortou no que se vê, não no que custa. Não se mexeu nas estruturas pesadas, nas inutilidades, nos organismos sem sentido e, muitas vezes, duplicados. Não há reforma fiscal, nem desburocratização, nem simplificação. Mais do mesmo: o Estado a fingir que emagrece.

Depois, a economia. Não há uma ideia. Uma. Tudo são chavões: sustentabilidade, inovação, economia azul, resiliência. Palavras que não querem dizer nada, e servem apenas para esconder o essencial, a economia regional está presa a subsídios, favores, monopólios e proteções. Não há concorrência real. Não há destruição criadora. Há empresas protegidas por relações com o poder, e um mercado bloqueado por regulações que ninguém tem coragem de abolir.

E há a ginástica do PIB, esse número mágico que serve para tudo: discursos, inaugurações, debates, entrevistas. O PIB cresce, dizem eles, e com isso esperam silenciar dúvidas, críticas, realidades. Mas de que serve o PIB, por mais que cresça, salte ou dance, se esse crescimento não chega às pessoas?

A educação é uma paródia. Enchem-se as escolas de “tablets” e “salas do futuro”, mas os alunos continuam sem saber escrever uma carta, interpretar um texto ou fazer contas sem calculadora. Os professores são promovidos por antiguidade, não por mérito. O sistema é dirigido por burocratas que tratam os pais como menores e os alunos como estatísticas. A “inclusão” permite nivelar por baixo. A “autonomia escolar” é uma piada. A liberdade de escolha não existe. E o talento vai embora.

Na habitação, regressamos ao assistencialismo. O Estado vai construir, subsidiar, regular, distribuir. Vai resolver tudo. Mas nunca liberalizar. Nunca cortar nos impostos. Nunca abrir o mercado. Nunca reduzir os prazos absurdos de licenciamento. Porque isso tiraria poder à administração e deixaria o cidadão, Deus nos acuda, livre para construir, comprar, arrendar sem pedir licença.

E por falar em assistencialismo, é altura de chamar as coisas pelos nomes. Aquilo a que o Governo Regional chama “respostas sociais”, “acompanhamento próximo”, “estratégias de inclusão” e outras banalidades decoradas em manuais de sociologia, não passa, na prática, de uma caridade institucionalizada. Uma rede de dependência permanente, onde se trocam subsídios por silêncio político e apoios por gratidão eleitoral. Não se liberta ninguém, mantêm-se todos presos, domesticados, agradecidos.

Na saúde, a receita é antiga e os sintomas crónicos. O Governo promete “melhorar os cuidados”, “motivar profissionais” e “reduzir listas de espera”, como se repetir o diagnóstico curasse a doença. Anuncia mais investimento, mais verbas. Mas mantém tudo como está: o sistema público é ineficiente, os profissionais fogem ou desanimam, e o cidadão espera. O sector privado é tratado como ameaça, a concorrência é vista com desconfiança, e o doente continua a ser um número numa fila que nunca mais anda.

Na juventude, o paternalismo assume contornos quase cínicos. O jovem madeirense é tratado como uma espécie de animal protegido, alvo de programas, eventos e plataformas de participação, tudo cuidadosamente mediado pelo Estado. Fala-se de “empoderamento” enquanto se o prende com regras laborais obsoletas, burocracias kafkianas e salários de estagiário. Não lhes dão liberdade. Não lhes dão propriedade. Dão-lhes festivais. E depois admiram-se que partam.

Mas é na Autonomia que a farsa se torna tragicómica. O Governo Regional exige mais poder, mais dinheiro, mais liberdade. E na página seguinte, pede à República que continue a pagar os “sobrecustos”. Quer um sistema fiscal próprio, mas com financiamento garantido por Lisboa. Quer ser diferente, mas igual no subsídio. Grita independência, mas vive de mesada. Não quer autonomia: quer isenção de responsabilidade.

A Autonomia, a verdadeira, só existirá quando o Governo Regional tiver a coragem de dizer: “Vamos viver com os nossos meios. Vamos cortar no que não serve. Vamos dar liberdade às pessoas. E vamos ser julgados por isso.” Mas isso nunca acontecerá.

A Madeira não é autónoma. É uma dependência de luxo, com discursos de resistência e práticas de servilismo. O seu Governo é um pequeno Estado-providência em miniatura, que se apresenta como baluarte da liberdade, enquanto trata os cidadãos como súbditos a alimentar.

O pior? É que o povo acredita. Ainda acredita. Por mais quanto tempo, isso, nem o Governo sabe.