Análise

Falhanço quase total

Pedimos paz e deram-nos guerra. De que vale sonhar com um mundo melhor?

Há um ano partilhámos com o leitor alguns desejos colectivos que importa agora avaliar.

Desejámos que a saúde fosse parceira da nossa existência e que quem cuida da vida fortalecesse os que enfrentavam adversidades, crises e vírus com energia redobrada. As notícias sobre a falta de remédios, as infindáveis listas de espera ou as brigas entre especialistas nalguns serviços hospitalares humilham quem tinha esperança numa melhor gestão da coisa pública e demonstram que nem o dinheiro abundante consegue resolver o que, sendo problemático, carece de atitude reformista séria. Quem sofre continua a pedir soluções, mas dão-lhe eutanásia, deseja bom senso, mas oferecem-lhe medo, solicita fármacos com urgência, mas recebe um demorado encolher de ombros. Por isso, continuamos a pedir líderes em vez de burocratas, ciência em vez de palpites e arrojo em vez de calculismo. Governar em função do momento pode dar votos, mas não garante futuro.

Pensávamos que a prepotência daria lugar ao diálogo e que a arrogância seria suplantada pela capacidade negocial. O primeiro-ministro, mesmo que sem mão em escândalos, polémicas e demissões, proclamou: “Habituem-se!”. O presidente da República assumiu-se como comentador frequente de quase tudo, a qualquer hora, enquanto o País assiste incrédulo ao desfile de crimes de lesa pátria, dos mais descarados aos mais manhosos. O presidente do Governo insistiu na tese “quer queiram, quer não”, o que deixa pouca margem para a cooperação.

Acreditávamos que a solidariedade seria capaz de esbater assimetrias, mas os esforços conjuntos, a par dos subsídios eleitoralistas, não deram para as encomendas, tal o número de necessitados sem recursos, sem hábitos de poupança e sem alternativa à pobreza herdada.

Julgámos ser possível trabalho para todos, devidamente acompanhado de salários dignos, mas também de oportunidades de afirmação pessoal e de espaço para a legítima ambição. É certo que o desemprego baixou, mas continua a faltar mão-de-obra, alguma dela qualificada, e sobretudo reconhecimento e justiça. Ordenados de miséria, fatiados por impostos abusivos e taxas de toda a espécie, atentam contra a dignidade humana.

Pedimos que o ódio alimentado nas redes ditas sociais e o insulto fácil fosse expurgado. Não só piorou, como tomou conta da vida real, com a guerra sem fim à vista e muitas outras delinquências intoleráveis.

Sonhámos com o elogio do mérito, mas vimos premiado o irracional, com a cidadania empenhada, mas constatámos desleixo crescente, com a gratidão assumida, mas notámos indiferença.

O que desejamos para cada ano novo será sempre uma miragem se não quisermos fazer diferente, prescindindo de conveniências, mordomias e benefícios quando o desafio exige sobretudo profissionalismo, competência e desprendimento ou se nos acomodarmos às circunstâncias, esbanjando assim oportunidades únicas de intervenção construtiva. Se cada um fizer a sua parte, assumindo responsabilidades e culpas, e estiver comprometido com o essencial, com a transparência e com a ética, quase de certeza que viveremos melhor.