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A política da virtude fácil

O título é de um capítulo da obra “Filosofia Pública” de Michael J. Sandel. O autor, algures, escreve que para alguns, as palavras que lhes soam mal deviam ser erradicadas e eliminadas da boca do discurso crítico que é público. A expressão correta seria “proibir” o que é dito por outros e que incomoda a alguns. Trata-se daquele profundo aborrecimento, não meramente político e não totalmente pessoal, de se poder ser alvo de análise porque, até, se é líder de alguma coisa. É aquela chatice de alguém considerar que pode analisar o discurso e a ação política, e ter a petulância de até o transmitir publicamente. Todos sabemos que o atrevimento de pensar pode ser mal acolhido. Todas estas visões podem ser extensivamente defendidas por aqueles que mais defendem a democracia, ou antes, o seu tipo de democracia.

Também são esses pseudodemocratas que, não raras vezes, se atrevem a prostituir a palavra liberdade. As purgas, os despeitos, as perseguições e os maus olhares (tenho em mim que, algumas vezes, também os maus-olhados) ficam justificados porque a virtude fácil faz parte do jogo político. Dizem-se umas coisas sobre justiça, outras sobre a igualdade e mais uma coisa qualquer sobre qualquer coisa até que todas elas se tornem apreciações ingénuas e, até, inócuas perante as convicções. Fazem, regra geral, uma profunda confusão entre Estado Social e direitos fundamentais.

Depois há aquelas contradições básicas: tanto se defende as comunidades e as tradições como o capitalismo livre e aberto ao mundo global. A desregulação total e a demissão do Estado são para serem sovadas num mundo tecnicamente exigente de autoemulação. O tempo é de competição. Ver qual o melhor marketeiro que anda por aí e vender e voltar a vender a imagem tamanho XL, que é para ter a certeza que se é visto.

Na luta entre conservadores e democratas, a política da virtude fácil não faz o debate com os valores que integram os quadros ideológicos de cada espectro partidário. Depois gritam que não há esquerda nem direita. Mas reconhecem a existência dos extremos, tanto à direita como à esquerda.  Ora bolas. Decidam-se. Isto significa, essencialmente, não se saber comunicar o que se acredita e o que se quer. “A finalidade da política não deveria ser dizer às pessoas como viver, mas sim dar-lhes a liberdade necessária para que possam decidir por si mesmas como querem fazê-lo (Sandel, 2020, p.74)”.

Por outro lado, não há neutralidade na política que debate as questões morais, religiosas e, até mesmo, culturais. O que é o direito civil se não isso mesmo? A “legislação sobre questões morais” (Sandel, 2020, p. 75) é a assunção da educação social por decisão política e a responsabilidade pelos direitos de todos e de cada um. Um líder não tem de gritar que é o candidato dos valores. É indiferente a quem ouve, se é que alguém o ouve. A política da virtude fácil cansa pelo paternalismo que nos menoriza.

Vivemos tempos insólitos. Os que bradam de peito inchado pela democracia são os mesmos que ostracizam a esperança. São os mesmos que, sob a capa da virtude fácil, matam os seus com um autoritarismo que de falso só tem o sorriso. A crise da democracia tem a ver com estas e outras condutas. Com a crítica fácil marcada pelos tiques de estrela (de)cadente. A luz que se arrasta na cauda das estrelas é sintoma da sua morte, mas poucos veem isso. Já está morta, mas só os mais distraídos ainda lhe dão existência.

Claro que o leitor pode estar a apontar para este ou para aquele. Isso não é importante. Sabemos quem são. Penso que a nossa luta não deve ser contra os que praticam a política da virtude fácil. Por si sós, irão cair na lamacenta vida que criaram. A nossa luta pela democracia e por uma política de liberdade deve ser a compreensão mais íntima das palavras de Italo Calvino, quando escreveu: “Passei os primeiros vinte anos da minha vida vendo a cara de Mussolini a todas as horas”. Que haja memória. Descontentamento. Recomeço. Indignação. Juízo político. Protesto. Que a nossa maior virtude seja a capacidade de dizer “Não”.