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“Alguém fez alguma coisa?”

Na Madeira duas mulheres por dia são vítimas de violência doméstica. No silêncio são muitas mais.

Quem compreende a política como instrumento de liberdade e a educação como compromisso, sabe que a consciência é a busca pela eliminação da violência. Conceitos como bondade e liberdade desapareceram do nosso discurso quotidiano. O que parece não ser por nós sabido é que a ideia de virtude implica que os homens sejam livres. Isto é, a comunidade livre é possível se o Estado assumir a força de uma instituição moral educativa. Só assim são possíveis a felicidade e um sentido para a vida. Até para isso é preciso educação. Não uma educação que nos indique onde está o sentido, mas sim onde ele não pode estar. Daí que seja urgente que a discussão e o diálogo tomem o lugar da luta e da violência.

Voltemos à ideia de vida política enquanto progressiva realização da vida moral, isto é, enquanto reflexo da educação. Isto significa que para o homem de Estado o problema da moral deve converter-se num problema educativo da comunidade. Até porque foi a pressão social que levou à deploração do indivíduo e, consequentemente, à desnaturalização do homem.

A desnaturalização, na sociedade moderna, é o início da educação. É, nas palavras de Eric Weil, a “coisificação” do homem. Foi essa coisificação do homem que produziu a luta de estratos, ou seja, a violência social é a expressão do sentimento de injustiça. O mesmo autor identifica três tipos de violência: natural, social e individual. É relativamente fácil compreendermos a violência que a natureza exerce sobre nós (catástrofes naturais, por exemplo), ou aquela que é exercida pela sociedade. Exemplo disso é o calculismo, mecanicismo e matematização inerentes à vida social que, com alguma ligeireza, abraçamos.

Menos clara, porém, é a violência individual: aquela que se exerce sobre o outro e, em última análise, na sua forma mais radical, a violência exercida sobre si mesmo (o suicídio é o limite desta violência). Até aqui nada de novo. Mas como compreender os dados da violência sobre os outros? Como analisar, racionalmente, as causas e os efeitos da violência que tem por justificação o facto de eu ter nascido mulher? Como compreender que o maior risco que corro, na União Europeia, no meu país e na minha região, é devido ao facto de ser mulher?

E queria voltar ao início deste texto. Parece que não há relação entre a violência de género, a política como instrumento de liberdade e a educação como compromisso de eliminação da violência. Mas há: quando uma terra sabe que as suas filhas são espancadas e, em alguns casos, mortas isto não é um problema a ser assumido pelo poder político?

Eu poderia continuar a dissertar sobre a filosofia weiliana e sobre a animalidade e racionalidade humanas. Podia criticar este ou aquele que não encara a violência de género como uma prioridade política. Mas olho para os números e não há filosofia que nos salve: na Europa, uma em cada três mulheres sofre algum tipo de violência. Treze milhões de mulheres foram vítimas de violência ao longo de doze meses. Três milhões e meio foram abusadas sexualmente. Na Madeira duas mulheres por dia são vítimas de violência doméstica. No silêncio são muitas mais. Mais estranha é esta crença que me acompanha: alguém vai exigir mais. Ou antes, o mínimo: que o maior perigo que eu corra não seja o facto de ter nascido mulher.

E há uma voz que me pergunta: “Alguém fez alguma coisa?”