Crónicas

“Sistémico” (I)

Eu sei que a momentos a atualidade que fecunda a opinião publicada está mais voltada para as aventuras do ministro dos aeroportos, ou para os ciclópicos trabalhos que o novo líder do maior partido da oposição tem agora pela frente. Mas não me interessa engrossar a fileira dos comentadores, que muitas vezes deixam na sombra assuntos relevantes do nosso viver coletivo. É o caso do relatório apresentado a 30 de junho na Gulbenkian, em resultado de seis meses de trabalho, pela Comissão Independente (CI) para o Estudo de Abusos Sexuais contra crianças na Igreja em Portugal, que validou 338 testemunhos, de que 17 casos terão sido enviados para o Ministério Público (dos validados, 56,9 % são de homens). O presidente da Comissão deixou claro, também, que “foram resolvidos com sucesso” pontos importantes para o acesso aos arquivos da Igreja, o que resultou do particular empenho da Conferência Episcopal, conforme se congratulava D. José Ornelas no regresso da Santa Sé: “Vimos confirmados” e com “mais coragem” no caminho “que estamos a fazer” sobre a proteção de menores.

Ora bem: parece-me da maior importância relevar o bom andamento dos trabalhos da CI e o assumir de responsabilidades da própria Igreja, no modo consequente de enfrentar este problema. Isto face à descrença de muitos em que tal caminho se fizesse, e ao quase silêncio mediático sempre que se trata de mostrar resolução e não, apenas, de repercutir o escândalo.

Por isso, face a este tópico particularmente difícil da vida das comunidades, é justo sublinhar a especial pertinência de uma publicação apresentada na Universidade Católica Portuguesa (UCP) precisamente na véspera daquela conferência de imprensa da CI. Trata-se do livro “Uma Anatomia do Poder Eclesiástico”, onde participam teólogos e investigadores da UCP, e se avançam contributos fundamentais para uma compreensão mais funda, abrangente e crítica da problemática em questão. Alfredo Teixeira, por exemplo, entende que os abusos sexuais ocorridos dentro da Igreja “não podem ser vistos como resultado de comportamentos individuais”, mas como “uma doença do sistema”: “A dimensão tem escala geográfica e uma regularidade que nos leva a olhar para o problema como sistémico”, opinião que é corroborada pelo teólogo Tomás Halík e por outros co-autores da mesma publicação: a “crítica da razão institucional” e a “ocultação e invisibilidade da vítima” (que assegura a “auto defesa” dos abusadores); o olhar da Teologia para enfrentar o problema; o clericalismo e anticlericalismo como “agentes de mudança”; a questão do “poder eclesiástico” nas suas múltiplas incidências nas igrejas locais — eis alguns dos temas abordados, sem paninhos quentes mas com rigor, que é sempre a melhor maneira de não varrer o lixo para debaixo do tapete. Como diz A. Teixeira a concluir o seu estudo: “Mudam-se as palavras para enfrentar o problema, mas do ponto de vista simbólico as alterações não acontecem”. O que nos leva às palavras do padre Zolnner, membro da Comissão Pontifícia para a Tutela de Menores, em entrevista à Ecclesia, em Roma, apontando à questão da formação dos candidatos e à formação contínua dos sacerdotes: “O problema dos abusos não surge após a ordenação, surge 15, 20 anos depois da ordenação, quando as pessoas estão cansadas, esgotadas, sozinhas, e chegam a um ponto em que as suas necessidades espirituais e emocionais não são preenchidas”.

Ou seja: até que ponto a instituição “Seminário” não terá que ser, hoje, repensada?