Crónicas

“Carne Vale”

Escrever “na areia” pode manifestar um olhar propriamente existencial sobre a vida e o mundo na sua verdade profunda: um assumir sincero da evanescência de todas as coisas. Mas, ouvir ecoar de novo o refrão das Cinzas — “Lembra-te que és pó, e em pó te tornarás”— e baixar a cabeça ao gesto de profundo simbolismo que marca o início da Quaresma, isso é cairmos realmente na conta do “que” somos, mas abertos à possibilidade de libertar o “quem” verdadeiramente somos, que é o que estamos chamados a ser!

Numa versão mais recorrente quanto à sua etimologia, a palavra Carnaval vem do latim tardio “carne vale” (pronunciar com “é” aberto), ou seja, “adeus carne”, ou “adeus à carne”, e que remete para as práticas de jejum e abstinência que caraterizam, para os cristãos, o período da Quaresma. A expressão tem o seu quê de metáfora moral, ao apontar o dedo aos pecados “carnais” mais comuns, a gula e a luxúria... E não é inusitado que ela faça hoje despontar amplos sorrisos irónicos: a nova religião secular, animalista e veganista, não só proclama mas exige a abstinência alimentar de toda a carne... Ora, o tema revolve (-nos), no baú da memória, as conspícuas pregações quaresmais, de que pouco mais ficava que essa quase obsessão retórica com a “carne” e sua abstinência, quando à mesa do pobre ela já era, por assim dizer, inexistente, e a sua eventual substituição por peixe, ainda mais rara e onerosa, coisa dos ricos da altura (que certamente fariam outros sacrifícios para “salvar” a sua quaresma)... E as vias sacras do tempo e da linguagem de então, retomavam, em quaresmal recorrência, a trilogia da perdição — o mundo, o demónio e a carne —, realisticamente explanada sobre tal cenário, afinal bem vivo nesses dias pós-carnavalescos...

Devo dizer que, pessoalmente, nunca achei grande piada aos “carnavais”. Agora já esfumados na infância, eram dois ou três dias de infernal batucada nas “telefonias” totalmente rendidas ao samba, coisa então sem graça nem contexto, azucrinando a paciência lá pelos terreiros onde as mães bordavam. E o velho Entrudo era aquele dia de surripiar umas belas malassadas, com andrajosos mascarados a percorrerem os caminhos, entre momices e piruetas extravagantes, muitos deles aproveitando já então esse dia para trocarem as calças por um vestido, na altura o disfarce possível... Mais tarde, com a “modernização” e “direito de cidadania” conquistados pela efeméride, o Carnaval sempre me pareceu a encenação requintada da propensão humana para “encarnar” a sua própria auto-alienação! A verdade é que, por estes dias, dei comigo a pensar na imagem assaz grotesca que seria o termos por aí ruidosos desfiles de Carnaval, com as suas coreografias belas e inúteis, enquanto lá nos confins de uma Europa nascida da “civilização cristã ocidental”, um país vai sendo trucidado numa guerra impensável à porta das democracias, a violência a impor todos os dias o seu cortejo de atrocidades aos mais indefesos, a vilania de um poder despótico que apenas modernizou a triste saga dos czares, do velho Ivan aos sanguinários soviéticos, prosseguindo agora, de gravata e com novas tecnologias, a antiquíssima sanha imperial (e demencial) da “mãe Rússia”!

Que podemos fazer, que nos cabe esperar? Talvez olhar para a guerra como a maior mentira da política, onde se engendra e realiza a total falência do homem na sua mesma humanidade: a guerra é, literalmente, “carne vale”...