Crónicas

Um homem sem preço

A simplicidade e o sentido prático do Almirante Gouveia e Melo até dão gosto

O cínico, segundo Oscar Wilde, sabe o preço de tudo, mas não sabe o valor de nada. Os cínicos portugueses, que são os mandarins do sítio, sabem quanto gasta um inglês em cervejas e tremoços, mas ainda não aprenderam o preço de se vender por pouco.

Convém rever a matéria dada. Ficámos em casa para proteger duas prioridades: prevenir as mortes, e assegurar a capacidade de resposta do Serviço Nacional de Saúde. Há pelo menos algumas semanas que nenhum deles parece em risco, conforme se aproxima o Verão e avança a vacinação.

É possível, naturalmente, que as medidas profilácticas se mantenham para prevenir uma qualquer estirpe, mais infecciosa ou letal, que por pudor continue secreta. Mas a sensação que se instala é de que as medidas não se destinam já a salvar vidas, mas a atingir metas burocráticas, que absolvam o Governo perante o país e os mercados turísticos. E assim o convívio a conta-gotas, o sacrifício do comércio, da circulação e da vida já não servem para ajudar o hospital, mas para salvar o hotel.

Não era preciso um sentido muito agudo da realidade para entender que essa tese desembocava no absurdo – fatal – de enclausurar os portugueses para libertar os estrangeiros, que por sua vez se encarregariam de derrotar o propósito inicial. Com o condimento de irritar os locais, e galvanizá-los para a mais gratuita das desobediências.

Era pois previsível que, a troco de dois péssimos exemplos futebolísticos – a Champions e os festejos do campeonato – , o país furasse o misterioso limiar do Governo de Boris Johnson, e ficasse excluído do maná vacinado da lista verde britânica. Enquanto a hotelaria desespera, a rua vai rindo e gozando, mas fá-lo com um escárnio que é prenúncio do desacato e do desprezo. Ai de quem tiver de impor a ordem nos próximos meses.

Deste episódio, fica a sempre proveitosa lição de que o servilismo de bandeja, na sua sabujice, chega a ser auto-destrutivo. Mas fica também a imagem de um Governo opaco e corporativista, em que o bem comum e o espaço público se subordinam à conveniência e ao capricho.

Afinal, um discurso atrás de outro, e ninguém se entende quanto à real – e actual – relação entre o índice R(t), os casos por cem mil habitantes, e as mortes e internamentos. O Governo ora fala em “matriz”, ora discute o “quadrado”, deixando o telespectador no desconhecimento da correcta expressão matemática do seu encarceramento. Porque a matriz e o quadrado são abstracções de impacto desconhecido, o Governo vê-se hoje reduzido a caucionar excepções e a distribuir privilégios. Um exercício onde acaba a poupar as classes organizadas ou endinheiradas, e a ir buscar restrições a quem tem menos capacidade de lhes resistir. As liberdades, no fundo, cobram-se como um imposto. Os estrangeiros vêm para cá soltinhos pela mesma razão por que vêm com isenção de IRS: para que venham, se fizerem o favor.

Entramos então numa fase perigosa. A pandemia vai deixando de ser um caso de força maior, e vai gradativamente se convertendo numa plataforma para projectos políticos. É a plataforma do Ministro das Infraestruturas, que se sentiu autorizado a escorraçar um empresário da aviação por ter recorrido ao Tribunal Europeu. É a plataforma dos Presidentes da Câmara, de repente responsáveis por qualquer agremiação no seu território. É a plataforma do Ministro da Administração Interna, que sobrevive ao desastre e ao atropelo a coberto de uma despropositada amizade com o Primeiro-Ministro. É a plataforma do Ministro dos Negócios Estrangeiros, que sucessivamente se surpreende com as decisões do Foreign Office quando os critérios britânicos – bem ou mal – estão fixados na pedra, e são previsíveis. E é a plataforma do Plano de Recuperação e Resiliência, que investe despudoradamente em infra-estruturas públicas, e confunde a criação de emprego e riqueza com o fomento de uma nova classe dirigente e a dilatação do corpo de funcionários que é hoje base e apoio do poder.

Se o vírus está em todo o lado, a todo o lado se estendem os poderes para o erradicar. Assim justificada a opressão e o arbítrio, o Governo vem lançando as bases para a sociedade controladinha e clientelar que é o catecismo da secular miséria portuguesa.

Não haverá, nesta história, algo a correr bem? Há com certeza. É a vacinação, que por estes dias contava com dois milhões integralmente vacinados, quatro milhões com uma toma, e praticamente todos os grupos de risco defendidos.

A simplicidade e o sentido prático do Almirante Gouveia e Melo até dão gosto. Esta semana, por exemplo, a task force criou “casas abertas” de vacinação para maiores de 70 que não tenham ainda levado a vacina, benesse a alargar a outras faixas etárias conforme o processo for avançando.

É sintomático que a pandemia se recupere pelo único lado de onde veio um sinal de independência, apartidarismo, e serviço público abnegado. É aliás apropriado que o Almirante use a farda camuflada. Não para o disfarçar em combate, mas para o distinguir numa sociedade civil carecida de distinção.

Em democracia, ansiar pela disciplina militar é um péssimo sinal. Mas, sem ele e a reserva de desprendimento, resolução e mérito que trouxe à pandemia portuguesa, estes tempos cegos e improvisados teriam sido ainda mais pesados. É a imagem do melhor de Portugal. É um homem sem preço.