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“Os imbecis felizes que nasceram numa terra qualquer”

Reza a fábula que o rei D. Luís ao cruzar-se no alto mar com os pescadores da lancha Senhora Nagonia lhes terá perguntado da amurada do seu iate se eram portugueses, ao que estes responderam: “– Não, meu senhor, nós somos da Póvoa de Varzim!” A moral da história é simples: naqueles tempos de analfabetismo pandémico, nem todos sabiam a que país pertenciam, embora todos soubessem de que terra eram. Em certa medida, continua a ser assim nos dias de hoje. Por exemplo: quando um continental pouco alfabetizado, depois de saber que vivo na Madeira há mais de 30 anos, insinua que já sou “mais madeirense que português” respondo logo: – Não, meu senhor, eu sou da Póvoa de Varzim! O que é, aliás, pura verdade: foi na Póvoa que nasci, aprendi a andar, a falar e a nadar (exactamente por esta ordem).

Não me venham, portanto, dizer que é madeirense quem quer, ou quem “tem a Madeira no coração” como apregoava o Dr. Alberto João Jardim para explicar que nem todos os continentais eram “cubanos”. Para ser madeirense é preciso ter nascido na Madeira, nela ter dado os primeiros passos e nela ter mastigado, com os primeiros dentes, a primeira anona. Seria eu o que sou hoje se tivesse podido saborear uma anona – o mais delicioso dos frutos! – com a minha dentição de leite? No mínimo seria, talvez, menos amargo.... Infelizmente, não havia anonas na Póvoa de Varzim! Nem as doces manhãs de Inverno subtropicais; nem as noites belas que o Max cantou; nem sequer a bonomia e hospitalidade das gentes. Tudo era agreste naquela várzea, de manhã mergulhada no nevoeiro e à tarde varrida pela nortada. Não admira, pois, que os pescadores usassem grossas camisolas de lã – as conhecidas camisolas da Tory Burch – e olhassem com rancor para os turistas.

Em meados do século passado, o poeta anarquista Brassens dedicou uma das suas cançonetas aos “imbecis felizes que nasceram numa terra qualquer” ridicularizando o chauvinismo que reinava nas vilórias francesas. Tinha razão, nada de mais enjoativo que um parolo francês – a terra onde nasceu é sempre a melhor do mundo. Nesse aspecto prefiro o parolo português, sempre pronto a dizer mal da sua própria terra e a louvar tudo o que vem de fora. Na parolice, reconheço, sou tipicamente português, digo mal da Póvoa de Varzim. E como podia eu dizer bem de uma gente que, em 1980, se orgulhava de ter erguido, à beira mar, a torre mais alta da Península Ibérica? 29 andares, bem acima dos 17 do Savoy Palace. Que parolos! Lá no fundo, porém, – como negá-lo... – gosto do cheiro do sargaço, da nortada, e sei de cor os versos que António Nobre dedicou à minha terra: “Georges! anda ver meu país de Marinheiros,/ O meu país das naus, de esquadras e de frotas/ Oh as lanchas dos poveiros/ A saírem a barra, entre ondas e gaivotas! (...)/ Senhora Nagonia!/ Olha, acolá!/ Que linda vai com seu erro de ortografia...”