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Papa enfrenta pandemia e 'rockets' para encorajar comunidades cristãs no Iraque

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O Iraque prepara-se para receber o papa Francisco entre 05 e 08 de março, numa visita histórica que constitui um quebra-cabeças em termos de segurança face à pandemia e a recentes ataques com 'rockets'.

O papa emérito Bento XVI considerou numa entrevista na segunda-feira ao jornal Il Corriere della Sera que aquela "é uma viagem muito importante", mas que, "infelizmente, ocorre num momento muito difícil que a torna perigosa".

Bento XVI referiu "razões de segurança e a (...) covid", apontando também "a situação instável do Iraque". "Acompanharei Francisco com as minhas orações", adiantou.

A avaliação é partilhada por organizadores da visita no Iraque.

"Estamos muito satisfeitos com a vinda do papa Francisco, mas ela acontece num momento bastante complicado", admite sem rodeios um dos responsáveis pela organização da visita da Presidência iraquiana, citado pela agência France-Presse.

Para se tornar o primeiro papa a visitar o Iraque e encorajar as comunidades cristãs no país, Francisco, 84 anos, enfrenta uma segunda vaga do novo coronavírus e um confinamento renovado, 'rockets' e manifestações, além de ter de deslocar-se a infraestruturas em ruínas.

O "momento bastante complicado" começou há algumas semanas com um novo pico de infeções pelo novo coronavírus - 4.000 casos diários contra algumas centenas anteriormente. Entre os novos doentes está o embaixador do Vaticano em Bagdade, o núncio apostólico Metja Leskovar, que testou positivo para a covid-19 a uma semana da visita de Francisco ao Iraque.

Fonte da nunciatura disse no domingo que Leskovar "tem sintomas ligeiros e está isolado", adiantando que "continua o seu trabalho para organizar a visita".

Mas, tendo em conta que o papa costuma ficar nas nunciaturas dos países que visita, desconhece-se onde Francisco irá pernoitar no Iraque, país muçulmano de maioria xiita.

O aumento de casos de covid-19 faz recear que as missas se tornem grandes focos de contaminação e se o papa e dezenas de pessoas que o acompanham foram vacinados o mesmo não acontece com os cerca de 40 milhões de iraquianos.

O Iraque, que regista um total 699.800 infetados, incluindo 13.428 mortos, só na segunda-feira à noite recebeu as primeiras 50.000 doses da vacina, a Sinopharm, um presente da China, e anunciou que iniciaria a imunização na terça-feira.

Não sendo o distanciamento físico, as quarentenas e o uso da máscara práticas muito seguidas pelos iraquianos, os organizadores da visita papal limitaram drasticamente os lugares para as missas.

O estádio de Erbil, com 20.000 lugares, apenas deverá receber cerca de 4.000 fiéis para a missa de domingo e Francisco será privado dos habituais banhos de multidão.

Além disso, será decretado um confinamento nacional durante todo o período da visita do papa e "as forças de segurança serão destacadas para proteger as estradas", explicou o vice-ministro dos Negócios Estrangeiros, Nizar Kheirallah.

Mas o vírus não é a única preocupação para a polícia e os soldados que acompanharão o papa. Erbil (norte) e Bagdade, a segunda capital mais populosa do mundo árabe com cerca de 10 milhões de habitantes, foram palco recentemente de ataques de 'rockets' contra interesses norte-americanos.

Na capital são polidos os sinos das igrejas e os cartazes de políticos substituídos por mensagens de boas vindas a Francisco, mas a alegria geral e os preparativos não conseguem fazer esquecer um contexto explosivo.

Em três dias, o papa deverá percorrer mais de 1.445 quilómetros de helicóptero ou avião e sobrevoará por vezes zonas onde se escondem ainda elementos ativos do grupo 'jihadista' Estado Islâmico (EI).

Símbolo das atrocidades dos fundamentalistas do EI é Mossul, a terceira maior cidade do Iraque, onde o papa fará uma oração pelas vítimas no domingo.

No dia anterior, Francisco visitará a antiga Ur - a capital dos sumérios, que a tradição cristã aponta como a terra natal de Abraão - situada na província de Zi Qar, onde nas últimas semanas recomeçaram as manifestações antigovernamentais e na semana passada foram mortos seis manifestantes.

Durante a visita, guarda-costas e padres estarão sempre junto ao papa, que também sofre de ciática.

"O Vaticano acaba de nos anunciar que o papa não pode dar mais do que dez passos. Não sabemos realmente o que fazer", reconheceu o responsável da Presidência iraquiana, considerando, no entanto, que o esforço vale a pena.

"Que responsável estrangeiro poderá agora recusar-se a vir ao Iraque se o papa o fizer?", adiantou.

Papa vai encontrar cidades iraquianas devastadas pelo grupo 'jihadista' Estado Islâmico

A maioria da população cristã no Iraque concentra-se no norte do país, onde, na sua visita, o papa Francisco vai encontrar cidades devastadas pelo grupo 'jihadista' Estado Islâmico (EI) e famílias que só agora regressam lentamente a casa.

"Estamos a correr contra o tempo. Mas se Deus quiser tudo vai ficar pronto a tempo", disse à Lusa o padre Amar Yako, pároco da igreja de Al Tahira, em Qaraqosh, que vai receber o papa Francisco no domingo e não tem mãos a medir para acelerar as obras de reconstrução do edifício religioso que sentirá os passos de Francisco.

A preocupação do padre Yako é fácil de entender: basta fazer uma simples pesquisa no Google Maps pela igreja de Al Tahira, para percebermos o grau de destruição a que a cidade de Qaraqosh e o seu templo católico ficaram sujeitos, durante a ocupação do EI, entre 2014 e 2017, e o trabalho que a pequena comunidade cristã tem pela frente, antes de receber a visita papal.

"É impressionante o esforço que a população tem feito na região, depois de ter sofrido muito às mãos de terroristas", explicou à Lusa Maria Lozano, responsável de comunicação do departamento alemão da fundação Ajuda para as Igrejas Necessitadas (ACN, na sigla em inglês), uma das organizações que contribuiu com doações para a recuperação da igreja da paróquia de Al Tahira.

Maria Lozano esteve no norte do Iraque por cinco vezes e assistiu ao resultado da destruição do EI e dos ataques da coligação internacional militar que conseguiu desmantelar o califado dessa organização 'jihadista', que matou milhares de pessoas.

"Quando chegou à planície de Nínive, o EI disse aos cristãos que tinham um mês para se converterem ao islamismo ou para saírem do território", disse Lozano, ajudando a compreender por que existia uma comunidade de mais de um milhão de cristãos no Iraque e hoje restam poucos mais de 300.000.

"Vivemos tempos de muitas privações e de enormes desafios", disse o padre Amar Yako, numa breve conversa telefónica em que se percebia a ansiedade do sentido de antecipação da chegada do papa Francisco.

Quando reentrou na igreja da sua paróquia, após a retirada do EI de Qaraqosh, em 2018, Yako não conseguiu disfarçar "a profunda tristeza" por "ver a casa de Deus vazia e destruída", mas hoje confessa que esse aperto de coração lhe deu alento para colocar as mãos à obra e reconstruir Al Tahir, devolvendo-lhe a beleza do edifício original, erigido em 1932.

A cidade de Mossul, que o papa também visitará no domingo de manhã, foi uma das mais afetadas pelo conflito entre o EI e as forças aliadas, alvo de numerosos combates e bombardeamentos.

A população não resistiu ao regime de terror fundamentalista islâmico, milhares de homens morreram muitas mulheres foram escravizadas, e quem conseguiu fugir apenas agora está a conseguir regressar, muito lentamente, explicou Maria Lozano.

"Eu penso que apenas 40% da população regressou. Muitos não voltaram por receio de encontrarem um ambiente inseguro. Muitos por não suportarem a memória do que lá passaram", disse Lozano.

Segundo dados da ACN, nos três anos de guerra contra o EI, 34 igrejas foram totalmente destruídas, 132 foram incendiadas, 197 parcialmente danificadas, assim como mais de mil casas de cristãos foram totalmente destruídas e mais de três mil incendiadas, mostrando o grau de perseguição a esta minoria religiosa que se concentra sobretudo no norte do Iraque.

A poucos quilómetros de Qaraqosh e de Mossul, fica a cidade de Erbil, onde o papa Francisco celebrará uma missa no domingo à tarde e que conseguiu passar relativamente incólume aos violentos conflitos dos últimos anos.

"Esta foi, por isso, uma cidade que acolheu muitos refugiados. E é um dos locais para onde regressa ainda muita da população perseguida pelo EI", acrescentou Lozano, referindo-se ao processo de reconstrução que ainda está em curso, nesta região do norte do Iraque.

Maria Lozano está convencida de que a mensagem de Francisco na missa de Erbil será exatamente a de dizer a esses milhares de cristão que sofreram às mãos dos terroristas que não estão sozinhos, na sua dor.

Na cidade de Najaf, que foi um dos pilares do regime xiita, já se podem ler cartazes com as boas-vindas ao papa, no meio de destroços que lembram os bombardeamentos aliados que permitiram a libertação da região e revelam que o abandono que entretanto se instalou na região não permitirá uma reconstrução nem rápida nem indolor.

O papa Francisco poderá ouvir estórias da ocupação do EI da boca de cristãos que falam o aramaico, a língua que alegadamente foi usada por Jesus Cristo, e que a Igreja Católica Caldeia, com forte implantação no norte do Iraque, procura preservar, através de projetos de ajuda social.

Provas desta presença cristã no Iraque estão ainda espalhadas por creches, infantários e orfanatos que a Igreja Católica Caldeia, bem como a Igreja Ortodoxa, têm procurado construir e manter.

Outra ajuda importante tem sido dada pela Ordem Dominicana, explicou à Lusa Maria Lozano, que lembra o auxílio social dado à população cristã, que "se sente muitas vezes tratada de forma injusta", como "cidadãos de segunda", para quem um sinal do papa durante a sua visita será reconfortante.

"Ele levará certamente uma mensagem de consolo cristão. E isso vai ser tão, mas tão importante para aquelas pessoas, que sofreram tanto...", concluiu Lozano, lembrando o esforço que pessoas como o padre Amar Yako estão a fazer agora para tapar buracos de balas em paredes e feridas nos sentimentos das pessoas.