Crónicas

Mulheres de rija têmpera

«Ter uma filha não torna um homem decente. Ter uma esposa não torna um homem decente. Tratar as pessoas com respeito e dignidade é que torna um homem decente.»

Alexandria Ocasio-Cortez, a mulher mais jovem de sempre a ser eleita para o Congresso estado-unidense é, provavelmente, uma das mulheres democratas mais odiadas pela direita dos Estados Unidos.

Em julho de 2019, ela fez parte do grupo de quatro mulheres congressistas que Trump atacou, considerando que deviam voltar para os seus países de origem, afirmando, entre outras declarações igualmente infelizes, que «se elas não estão felizes nos Estados Unidos, podem ir embora». Das quatro, apenas Ilhan Omar nasceu fora dos EUA (mas adquiriu cidadania há 20 anos). As razões para o estranho pedido são simples: o facto de fazerem oposição a Trump e de serem muito críticas relativamente às políticas defendidas pelo partido Republicano e, (especialmente no caso de Alexandria Ocasio-Cortez, oriunda do Bronx, formada em Economia e Relações Internacionais, e eleita para o Congresso em 2019, com apenas 29 anos), por o fazerem de forma desassombrada e muito assertiva.

A esperança em Ocasio-Cortez é de tal ordem que, em maio de 2019, a Devil’s Due Comics, uma editora independente de banda desenhada, lhe dedicou um número intitulado «Alexandria Ocasio-Cortez and the Freshman Force».

Em julho deste ano, a congressista fez uma intervenção na Câmara dos Representantes que é um belo exemplo dessa assertividade e resiliência, em que denunciou e elaborou sobre a violência verbal de um congressista republicano que a insultou na escadaria do Capitólio. O episódio, por si só, seria suficientemente deplorável. Mas, ao ensaiar uma espécie de pedido de desculpas, o congressista afirmou que lamentava a «má interpretação» das suas palavras e que, portanto, o problema não estava nos impropérios que havia proferido, mas na interpretação de Ocasio-Cortez e do jornalista que presenciou toda a situação. Como se fosse possível interpretar de outra forma expressões como «cabra de merda», «nojenta», ou «doida» - clássicos nos insultos dirigidos a mulheres. Não contente com esta explicação de um hipotético problema de interpretação da visada, o congressista continuou o seu suposto pedido de desculpas dizendo que não pediria desculpa por ser «apaixonado, amar Deus, a família e o País». E como esta linha argumentativa ainda não era suficientemente surreal, invocou o facto de ser pai e marido de mulheres como prova da sua idoneidade.

O discurso de Alexandria Ocasio-Cortez é extremamente significativo porque deixa bem claro que esta linguagem não é nova e está culturalmente enraizada. Este comportamento, infelizmente demasiado comum, traduz a noção de que se pode insultar ou menorizar as mulheres apenas por serem mulheres, principalmente quando se atrevem a estar no campo oposto. Ao expor estas agressões verbais, Alexandra Ocasio-Cortez escancara o facto de muitas vezes os homens (que se imaginam) poderosos considerarem legítimo serem agressivos contra as mulheres que não afinam pelo seu diapasão. E na resposta ao pedido de desculpas (que nunca o foi), Alexandra Ocasio-Cortez rebate o argumento do congressista ao dizer que «Ter uma filha não torna um homem decente. Ter uma esposa não torna um homem decente. Tratar as pessoas com respeito e dignidade é que torna um homem decente.»

Mas voltemos à forma como as mulheres são tratadas quando adversárias de homens (que se imaginam) poderosos. É exemplar a descrição de Luísa Beltrão, em «Uma História para o Futuro», sobre a forma como Maria de Lourdes Pintasilgo (Primeira-ministro do V Governo Constitucional, entre 1979-1980) foi tratada na sessão da Assembleia quando apresentou o programa de governo, com insultos grosseiros que incluiram a recomendação de que fosse para casa coser meias. Na origem de tantos protestos não estava o programa apresentado, como acabaram por dizer, mas ela. Porque o problema era ela. Segundo Maria de Lourdes Pintasilgo, «pouco faltou para alguns deputados partirem as bancadas da Assembleia de tanto baterem nelas».

Desde então, o comportamento na Assembleia da República tornou-se menos agressivo quanto à presença de mulheres (e principalmente a mulheres com algum poder), mas tal não significa que toda a sociedade portuguesa veja com os mesmos olhos as tomadas de posição de homens e mulheres. Veja-se, por exemplo, o tipo de escrutínio e impropérios com que são brindadas mulheres assertivas na política, como foi o caso relativamente recente das deputadas do Bloco de Esquerda, apodadas por um comentarista político de que eram «esganiçadas» e que «(…) não queria nenhuma daquelas mulheres - já tenho pensado - eu não queria nenhuma daquelas mulheres, nem dada. Nem dada! Porquê? Porque eu não conseguiria com elas, com uma delas, com uma mulher assim, construir uma comunidade, uma família. Elas estão sempre contra alguém ou contra alguma coisa.»

Entretanto, por cá, o desrespeito também acontece, noutros moldes. Na semana a seguir a eu ter publicado um texto sobre o documentário «A Democracia em Vertigem» e que intitulei de «Tchau querida» porque dizia respeito aos cartazes e vociferações quando do impeachment de Dilma Rousseff, houve um deputado do partido maioritário que, em resposta a uma intervenção que eu fazia em sede de Assembleia, interrompeu-me várias vezes com «oh querida». Mais recentemente, em resposta a uma colega de bancada, também em pleno debate parlamentar, um membro do governo começa a responder chamando-a de «querida». Ao terminar a intervenção telefonou à minha colega a pedir desculpa, mas numa sessão posterior considerou, de forma bastante irada, que o tratamento era «carinhoso» e nada depreciativo e que a má-fé estaria da nossa parte. Claro que é depreciativo, e na exata medida em que a expressão foi usada relativamente a Dilma Rousseff. É uma tentativa de infantilizar a adversária. Certo é que nunca um deputado ou um membro de governo se lembrou de se dirigir a um deputado da oposição chamando-o de «querido». Há outro tipo de insultos dirigidos aos homens (também graves), mas que não passam por aquela infantilização paternalista do adversário.

Alexandria Ocasio-Cortez tem razão. A forma como as mulheres são tratadas tem que ver com toda uma estrutura cultural e social que ainda considera aceitável uma linguagem que espelha a tentativa de menorização das mulheres – desde as que são eleitas para exercer cargos políticos até às mulheres que são alvo de linguagem abusiva por parte de desconhecidos quando andam na rua. Tem que ver com uma estrutura de poder que não está disposta a aceitar que as mulheres assumam posições públicas e contrárias, de forma assertiva e sem medo. É isso que é insuportável. E é por isso que ainda há quem suspire por homens de rija têmpera, sem perceber que a têmpera das mulheres não pertence ao futuro, mas ao presente: é algo com que terão de aprender a lidar.

E argumentar de igual para igual.

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