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Cozinheiros acreditam que a crise levará a uma mudança para um consumo mais racional

O cozinheiro argentino Mauro Colagreco, responsável pelo “Mirazur”, considerado o melhor restaurante do mundo, disse ontem esperar que a crise desencadeada pela covid-19 promova uma mudança de comportamentos no sentido de um consumo mais racional e equilibrado.

“A relação que temos com os alimentos ao longo das últimas décadas talvez não seja a ideal. (...) Esta mudança teria de ser para um consumo mais racional, mais equilibrado, em que tenhamos uma consciência sobre a relação consumo/impacto”, comentou o ‘chef’ do “Mirazur”, restaurante em Menton, França, com três estrelas Michelin e considerado o melhor do mundo na lista dos 50 Best.

Colagreco intervinha no primeiro dia do evento virtual “The Power of Food”, um “debate de emergência” sobre o futuro da restauração, promovido pelos organizadores do simpósio Sangue na Guelra.

Numa altura em que o combate à pandemia encerrou fronteiras e proibiu viagens, uma das principais consequências referidas ao longo do dia por vários intervenientes é um olhar mais próximo para a comunidade local, quer ao nível de produtores e comerciantes quer ao nível dos clientes.

Ainda sem data para a reabertura, o “Mirazur” já começou a receber reservas e Colagreco constatou que 45% destas são feitas por franceses, e, dentro desta fatia, 70% da região de Menton, algo inédito para o seu restaurante, que tem distribuído na comunidade cestas de produtos cultivados nas hortas do estabelecimento.

Para Enrico Vignoli, do grupo Francescana (que inclui o restaurante “Osteria Francescana”, em Modena, Itália, três estrelas Michelin e melhor do mundo em 2016 e 2018), muda sobretudo o conceito de bairro.

“Antes, um bairro poderia estar a uma hora de avião. (...) Hoje, o teu bairro é o local que consegues alcançar com as tuas coisas”, sustentou, considerando que durante este “período suspenso” há que “tentar encontrar novas ideias e ver quais ficarão para o futuro”.

“Temos de repensar o processo, o conceito de bairro, o conceito do valor -- porque é que as pessoas vão a restaurantes? Para terem um prato ou uma experiência? Eu penso que as pessoas são a experiência”, referiu Vignoli.

Joan Roca, um dos rostos do “El Celler de Can Roca” (em Girona, Espanha, três estrelas e o melhor do mundo em 2013 e 2015), sublinhou que “esse olhar para o que está próximo sempre esteve muito próximo”.

“Agora estamos mais conscientes do que nunca desta necessidade de colocar valor na autenticidade. Não é importante seres o melhor do mundo, mas ser autêntico no mundo, e isso é dado pelo que está à tua volta”, afirmou.

Roca reconheceu que a crise provocada pela covid-19 é “uma lição de humildade” e sobre a importância de “ir com cuidado a planear, a sonhar e a fazer coisas, mas continuar a fazer”.

Por seu lado, Andoni Aduriz (”Mugaritz”, no País Basco, Espanha, duas estrelas Michelin) sustentou que os projetos mais recentes e aqueles que já estavam em crise serão os mais afetados, falando numa “purga natural”.

“As pessoas que menos sofrem nas crises são as que têm mais dinheiro. Quando levantarem os estados de alarme, as pessoas com dinheiro vão mover-se e seguramente os nossos restaurantes não vão ter problemas em trabalhar. Agora, as tabernas, os locais mais orientados ao público local, [num cenário] de 20% de desemprego, se calhar ficarão pior do que restaurantes que vivem de um público internacional”, afirmou.

André Magalhães, responsável pela “Taberna da Rua das Flores”, em Lisboa, relatou que 80% da sua clientela era composta por turistas e “os portugueses lamentavam que não conseguiam lugar”.

“Agora temos esta oportunidade de nos reaproximarmos dos clientes locais, do bairro. Isso está a acontecer já. Estamos a levar a experiência [da Taberna] a casa [através de ‘take away’] e também interagindo com os pequenos negócios do bairro”, disse, relatando que o restaurante tem aumentado a partilha com a comunidade: “Damos comida aos bombeiros todos os dias. Ajudamos no que conseguimos no bairro”.

O economista britânico Tim Jackson também subscreveu uma mudança no modelo social: “A pandemia forçou-nos a olhar para fora do modelo que criou os desequilíbrios e desigualdades e a falta de resiliência. Este sistema não funciona para as pessoas, para o planeta, para a economia e muito menos num choque como este”.

Por seu turno, o antigo ministro do Desenvolvimento Regional Miguel Poiares Maduro (governo de Pedro Passos Coelho) apontou que a crise criará “muito mais desempregados e isso colocará pressão para que a comida seja mais barata”.

“É bom pensar que vamos ter produtos mais caros e da estação e generalizar esses produtos e assim pagar melhor à cadeia de produção, mas haverá também uma pressão para produzir rapidamente e a baixos custos para muitas pessoas que estarão sem trabalho”, considerou.

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