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Não pensar

Mas o que é pensar? A etimologia da palavra diz-nos que o termo deriva de “pesar” e, portanto, significa medir, estimar, comparar/relacionar

É célebre a afirmação, nas suas múltiplas versões, daquele que é considerado o primeiro filósofo do taoismo chinês (alguns consideram-no até santo), Lao-Tsé (n. 480 a.C.), de que “dar um peixe a um homem com fome, é alimentá-lo por um dia, mas ensinar um homem a pescar, é alimentá-lo toda a vida”, ou seja – como evidenciam determinados analistas económicos e da política contemporânea –, tal ensinamento traduz-se num apostar no futuro, em criar um modo de subsistência ‘durável’ em vez de apenas se resolver um problema do imediato. No entanto, podemos acrescentar a este estimado ensinamento confucionista, um outro mais atual/real que distingue e engrandece a nossa espécie e que é: “se ensinarmos um homem a pensar, tal permitir-lhe-á transformar o mundo, e para sempre!”.

A evolução do Homo Sapiens, que começou há cerca de 300 a 200 mil anos em terras da África Oriental (dizem-nos os paleantropólogos), e a mudança, a vários níveis, que este introduziu e cravou no planeta (para nossa conveniência), sobretudo nas últimas décadas, testemunha de forma bem observável e convincente este preceito. Foi o pensamento, a razão – alimento do desenvolvimento humano durante esta grande odisseia – que começou, segundo o astrónomo e divulgador da ciência, Carl Sagan, à cerca de 10 mil anos, quando abandonamos a vida nómada, domesticamos as plantas e os animais, nos tornamos sedentários e edificámos as primeiras aldeias, depois vilas e mais tarde as grandes cidades que hoje vislumbramos em todos os continentes, seja no hemisfério norte ou sul. Por outras palavras, foi o pensar que nos fez sair da ignorância, que deu alguma clareza ao mistério da vida e morte, que permitiu evitar dificuldades e suplantar obstáculos, duvidar, “descrer” (Fernando Pessoa), desenvolver aptidões e compreender (e experimentar) a matéria/realidade, que viabilizou grandes invenções ou descobertas como a do fogo, roda ou a alavanca, e mais recentemente explorar o universo e residir temporariamente 300 quilómetros acima da superfície do planeta Terra.

Mas o que é pensar? A etimologia da palavra diz-nos que o termo deriva de “pesar” e, portanto, significa medir, estimar, comparar/relacionar. De forma compendiada, pensar é sobretudo julgar, e desta maneira está intimamente ligado à operação mental do ato de conhecer. René Descartes deixou para a posteridade a descoberta do cogito, a noção de homem como pensamento, “uma coisa (res) que dúvida, que entende, que concebe, que afirma, que quer, que não quer, que imagina e que sente”.

Paradoxalmente, e após todas as conquistas acima listadas – e outras aqui suprimidas por falta de espaço e tempo – , na contemporânea “cultura-mundo ou cultura de massas” (Gilles Lipovetsky), conjuntamente apelidada de sociedade ou “civilização do espetáculo” (Guy Debord), aquela que está cada vez mais subordinada à imagem, onde há a retirada da palavra (George Steiner) e “o primeiro lugar na tabela de valores é ocupado pelo entretenimento (...), e divertir-se, fugir ao aborrecimento, é a paixão universal” (M. Vargas Llosa), pensar é um exercício em progressivo desuso. Somos cada vez mais influenciados pela forma como sentimos e percecionamos o mundo, e deixamo-nos levar e enganar (ou não) pelas aparências ou ilusões com que os sentidos já estão familiarizados.

Nesta nova era e atmosfera científico-tecnológica (da oponência do polegar, da incessante posse e manipulação de objetos), mediatizada e de disseminação globalizada da informação (empilhada conjuntamente com fake news nas redes sociais), produto de uma substituição e crise de valores (aliada a uma crise da democracia), em que a realidade surge também ela numa acelerada e contínua mudança, e que gera obtusas e incompreensíveis decisões políticas, económicas, ambientais, sociais e culturais (tereno fértil para a expansão de novos radicalismos e a afirmação de populismos), parece querer, estimular ou convidar, pelos menos uma larga maioria de cidadãos, a não pensarem de forma livre e aberta. Aliás, hoje, no geral o ser humano considera que vive melhor se pensar pouco ou não pensar, posição a que determinados tipos de liderança dão grande utilidade). O pensar traz a dúvida, desconforto, a ideia de culpa, de pecado, a melancolia, o medo... e ainda por cima é um exercício difícil, custoso, exige sofrimento e treino, isto é, tempo, horas sobre horas de consistente análise e/ou reflexão.

Lamentavelmente, também nas escolas as crianças (e adolescentes) são cada vez mais incentivadas a não pensar. A nova composição social que estamos a erigir não lhes dá tempo para pensar, não lhes admite “tempos livres”, momentos para o ócio; elas têm de estar sempre ocupadas, ligadas, em atividade, a queimar tempo, nem que seja num ecrã de computador, tablet ou telemóvel e a viver um mundo virtual que não reflete o eu nem sobre o eu, mas que distrai (e até mata). O pediatra e professor, Mário Cordeiro, afirma de modo muito claro que as crianças “estão a ser habituadas a não pensar” e os próprios professores parecem estar a ser impossibilitados, pelo sistema que se pretende implementar, de lançarem nos alunos o desafio de estudar e pensarem sobre determinadas temáticas. O que a acontece é que a escola está a deixar de incentivar a dúvida construtiva, o pensamento crítico e parece pretender que os alunos fiquem somente pela concordância dos factos, pela superficialidade, pelas “aprendizagens essenciais”, pois a profundidade, a revindicação de um conhecimento que vá para além da opinião – que exige mais tempo e labor – esse caminho é gradualmente eliminado dos programas ministeriais.

Nesta sociedade pós-industrial do Ocidente, num tempo em que a globalização já não é uma figura de retórica, a nova cultura tecnológica encanta, satisfaz – e parece completar – o ser humano. Ofereceu-lhe outro mundo e outros valores, uma existência acelerada, ficcional, cibernética, on-line e, em contrapartida, a prática da reflexão, da meditação, do pensar que ajuda a erigir e solidificar um eu, a personalidade de um ser, padece de um desincentivo estrutural num mundo onde as instituições (e quem nos governa) já não se dedica a pensar, mas unicamente a solucionar os problemas do momento. Alguns académicos proferem que a conjuntura atual é produto da crise das humanidades, cujos riscos são bem superiores aos da recente crise financeira, a qual emergiu nos anos 70 do século passado, nomeadamente quando se instalou a “deslegitimação progressiva da palavra escrita (e lida), em benefício de discursos dominados pela imagem, a gradual perda de poder simbólico de saberes com tradição na cultura ocidental – a Filosofia, a Literatura, a História...” (Carlos Reis), e se assistiu ao crescente prestígio de áreas, cursos e carreiras que se ajustavam e respondiam às novas solicitações socialmente urgentes e economicamente mais rentáveis, quer para as universidades públicas e privadas (também para os politécnicos), quer para as famílias dos alunos. Ora, perante este cenário que favorece uma espécie de cegueira e surdez intelectual, parece que já não há nada a fazer, mas tal não é verdade. O homem não perdeu ainda a capacidade de pensar, pelo que é urgente, talvez agora mais do que nunca, e porque novos contratempos e desafios se agigantam, exercitá-la!