Crónicas

Às vezes, o que nos resta não basta

Pelo que está plasmado no PDES, continuaremos a apostar quase exclusivamente num assistencialismo que cria essencialmente dependência

No Lugar da Serra, Terreiro e Fontes, no Campanário, a água para consumo tem horário de expediente. Isto significa que a partir das 17 horas, o mais tardar, as torneiras não pingam até às 10 horas do dia seguinte. Às vezes até às 11.

Imagine como seria a sua vida sem água no horário em que costuma tomar banho, preparar as refeições, lavar os dentes... imagine o que é manter a higiene das suas crianças nestas condições. Esta realidade acontece todos os dias a pessoas que também pagam por um serviço que lhes é barrado neste momento. Isto significa que, apesar dos discursos sobre o enorme sucesso que é a coesão territorial da Região, estas pequenas grandes desigualdades escancaram uma Região a várias velocidades, em que há cidadãos e cidadãs que não têm os mesmos direitos, apesar de terem os mesmos deveres. Parto deste exemplo porque quero deixar bem claro o divórcio entre a realidade e o discurso de propaganda que nos é vendido todos os dias pelo Governo Regional e partidos que o apoiam.

Na verdade, há produção científica que atesta que os contextos territoriais constituem um fator a ter em conta nas oportunidades e consequentes escolhas das pessoas que habitam territórios menos favorecidos. Isto significa que o local onde vivemos influencia não só a forma como vivemos, como também influenciará a forma como as nossas crianças crescerão e as oportunidades que terão – ou as oportunidades que não terão. Parto do exemplo que comecei por dar: o contexto de uma criança no Lugar da Serra é bastante diferente do de uma criança no centro da Ribeira Brava. Desde logo, porque uma empresa pública determina que a criança que vive no Lugar da Serra não tem direito a água a jorrar da torneira (ou do chuveiro).

Muito a propósito de se pensar as condições e idiossincrasias do nosso território, foi apresentado e discutido, na Assembleia Legislativa Regional, o Plano de Desenvolvimento Económico e Social da Região (PDES), um documento fundamental porque é feito um diagnóstico da situação atual da Região e apontam-se objetivos estratégicos e domínios de atuação das políticas públicas para os próximos 10 anos. No âmbito da discussão deste documento, o Vice-presidente do Governo Regional afirmou que a coesão territorial da Região «é um sucesso, tem sido um sucesso». E para que não restassem dúvidas, sublinhou que o desenvolvimento tem acontecido, na Madeira e Porto Santo, «(…) de forma praticamente igualitária, todos os concelhos têm exatamente as mesmas características, têm boas infraestruturas, boa acessibilidade, boas condições de vida de toda a população (…).» Estranho? Nem por isso. Provavelmente o Vice-Presidente nem sabe que há localidades a quem a ARM barra o acesso à água potável, certamente para garantir que não falte noutras.

Mas foi mais longe: perante o facto de a Madeira ser a segunda Região do País com a taxa de risco de pobreza mais alta, o Vice-presidente considerou que os índices de pobreza estão mal calculados, e justificou dizendo que, no que diz respeito à Região, os cálculos não têm em conta que há muitas pessoas que complementam os seus rendimentos com agricultura de subsistência. Parece não saber o que significa agricultura de subsistência; muito menos que implica um certo investimento e, muitas vezes, perdas das pequenas colheitas em função de múltiplos fatores. Defendeu também considerar que outro fator que contribui para deturpar os números é o facto de termos pensionistas com reformas muito baixas porque viveram toda a vida da agricultura e não descontaram muito. Depreende-se que o Vice-presidente, que admite a existência de pessoas que recebem reformas muito baixas, considera que a realidade destas pessoas não deve entrar nos cálculos da taxa de risco pobreza, claramente porque lhe estraga os números.

O que o Vice-presidente do Governo Regional não explicou foi o facto de o diagnóstico do PDES afirmar que as pessoas que se encontram em risco de pobreza e privação material severa (31,9% das pessoas está em risco de pobreza, 27,5% continua em risco mesmo depois da atribuição de prestações sociais, 9,4% em situação de privação material severa), representam um número superior ao número de pessoas desempregadas. Isto significa que nem a existência de um emprego – ou de uma reforma – garantem condições suficientes para que as pessoas saiam dos níveis de pobreza e possam ter uma vida condigna. Estes números, referentes a 2018, tornam-se mais preocupantes se pensarmos que dizem respeito a uma época que o Governo Regional assegurava ser de prosperidade.

Ainda não sabemos a dimensão do impacto económico e social da pandemia, a expressão da privação em função das consequências da paragem da economia e das perdas num dos mais importantes setores para a Região, o Turismo. Mas não é difícil concluir que a situação das pessoas que já viviam em condições de extrema fragilidade se tenham agravado com toda esta situação. Se pensarmos que já tínhamos mais de 30% da população em situação de risco de pobreza, isto é, com menos de 501 euros para fazer face a todas as despesas, percebemos a aflição em que certamente muitas famílias se encontram neste momento. Daí que as notícias sobre o número de cortes de eletricidade por falta de pagamento que acontecem um pouco por todos os municípios é preocupante, porque são muitos os agregados em que um serviço de primeira necessidade, como é a eletricidade, se tornou financeiramente incomportável. Logo por aqui conseguimos imaginar o esforço que estes agregados familiares têm de fazer no que diz respeito à alimentação. Não tenho dúvidas de que, em muitas casas (parafraseando Elvira Pereira, que tem estudado a pobreza em Portugal), as escolhas fazem-se «entre que necessidades vão ser satisfeitas e as de quem».

Assinala-se hoje, 17 de outubro, o Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza. Instituído pelas Nações Unidas em 1992, tem o intuito de lembrar e pressionar quem tem responsabilidades governativas para a importância de se investir em políticas públicas de combate à pobreza e exclusão social que pensem o território, as condições de habitabilidade, a educação como via de capacitação e superação, a empregabilidade e a justiça social de uma forma coesa e indissociável. Infelizmente, se olharmos para o plano que traça o rumo da Região para os próximos 10 anos, não se vislumbram investimentos que apontem nesse sentido, fazer o que é necessário para que as pessoas mais desfavorecidas vivam com mais dignidade na Região. Pelo que está plasmado no PDES, continuaremos a apostar quase exclusivamente num assistencialismo que cria essencialmente dependência em vez de investir na capacitação e no empoderamento das pessoas.

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