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Da exclusiva responsabilidade

Tenho quase os mesmos anos da democracia – levo três de vantagem – e cresci a ver campanhas, com os carros dos partidos a espalhar papelinhos às cores pelo caminho. Os tempos de antena davam na televisão e, enquanto não começava a telenovela brasileira, comíamos a propaganda dos partidos conhecidos e dos que só apareciam nas eleições. A maioria tinha inspiração marxista, defendia a ditadura do proletariado e, da infância, tenho memórias da Internacional a tocar como música de fundo.

Os governos não se demoravam muito e, em menos de um fósforo, voltava tudo ao princípio. Os carros com altifalantes subiam a encosta, repetiam slogans, espalhavam papéis e, claro, depois do noticiário regressavam os tempos de antena e aquela explicação de ser tudo da “exclusiva responsabilidade” dos partidos. Metia respeito que, lá por cima, não era costume uma pessoa dizer a outra que um assunto era “da exclusiva responsabilidade” de alguém. Os tempos eram outros, as pessoas encolhiam-se quando ouviam falar “político”.

E ser “político”, nas maneiras de ver do Laranjal, não era andar de bandeira na mão nos comício a pedir votos. Era outra coisa, era falar complicado, ter modos de gente da alta e confundir o pensamento a quem da vida nem pedia muito além do dinheiro para gastos, os filhos alimentados e descanso ao domingo à tarde. As mulheres à conversa e os homens a ouvir o relato da bola no rádio a pilhas. Quando corria assim, era bom. Não tinha doenças, nem se quebrava a cabeça com dívidas.

Mesmo sem ambições e de pé atrás ao que chegava de graça com a democracia, a minha mãe, as tias, os primos e os vizinhos não escaparam ao entusiasmo que a desordem política dava à existência de cada um. E cada qual escolheu assim como quem escolhe um clube, sem pensar muito, por causa da cor e de uma empatia que não se conseguia explicar. A época propiciava a entrega e lembro-me de um vizinho que não hesitou à convocatória do bispo Santana por causa da tomada do seminário.

O senhor, que às vezes ajudava na missa, foi à contra-manifestação organizada pela diocese e viu-se a meio do caos. Empurrão de um lado e de outro, partiu os óculos e, durante anos, não teve outro remédio senão usá-los assim mesmo, mas presos por um elástico branco. Não era o único, o povo consertava os óculos com elásticos. Ao menos tinha sido na defesa do património da igreja e contra os comunistas. A foice e o martelo dava tanto medo como visão do inferno arder. Pelo menos entre a minha família, por causa da fazenda e das casas, mais os galinheiros e as galinhas, estavam convencidas que iam partilhar com outras famílias.

A foice e o martelo dava tanto medo como as histórias de almas de outro mundo que a minha tia Alice costumava contar à tarde e que me tiravam o sono. Lembro-me que, durante uns tempos, olhei de lado para o vizinho para quem mandavam revistas cheias de foices e martelos. Os filhos iam buscar à venda do André e subiam o caminho sem vergonha de mostrar. Não ia demorar muito para ir às ameixas sem pedir licença e sem ser corridos pelo Fernandes, o trabalhador da fazenda.

Mas a ditadura do proletariado era uma coisa da televisão, não chegou ao Laranjal, não foi preciso dividir as galinhas, as foices e os martelos mudaram de cor e sobram poucas ameixeiras na fazenda. Só as eleições continuam mais ou menos na mesma.