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O valor imensurável de “Nós”

Quem assistiu ao espetáculo “O Gigante”, nos Barreiros, deve ter sentido, em certos momentos ou ao longo da apresentação, e mesmo que não conscientemente articulado pela sua mente, uma certa integração e sintonização emocional, mental e física, com as vibrações sonoras, dinâmica visual e narrativa poético-evocatória. Não foi para isso importante saber quantas pessoas assistiram, qual foi o nível da iluminação, a relevância do simbolismo ou quem pensou bem ou mal sobre o mesmo. Essas qualificações “a posteriori” permanecem à margem do busílis da experiência, que manifestamente se focou na transferência e partilha das emoções produzidas pelos intérpretes com o público. A pulsação da energia pura e crua, emanada pelo naipe de percussão, invocou e manteve acesa a afinidade primordial do nosso corpo de procurar sintonizar-se com os ritmos inebriantes. Do aparente caos inicial da “sopa primordial” de sons e do movimento dos executantes, a evocar o nascer da vida, até ao fim da história, formou-se um arco evolutivo da natureza e do ser humano pelos éones intervenientes.

Contudo, e sem menosprezar a intensidade da experiência para o público, porventura há que valorizar ainda mais a intensidade da experiência para os intérpretes. Em primeiro lugar, uma ocasião histórica que juntou todas as bandas filarmónicas da Madeira, a Banda Militar e as orquestras de sopro do Conservatório e da Direção de Serviços e Educação Artística e Multimédia da Madeira. Fazer parte de uma orquestra única da Região, miúdos e graúdos todos juntos, foi um momento na vida de cada um que de certeza será recordado. Fazer parte de um grande corpo executante que cria e reproduz música de maneira coordenada e sintonizada – isso já representa um momento da integração em que a prática no microcosmo de uma banda ou orquestra incorpora-se para fazer parte do macrocosmo em que o orgulho de “eu” fazer parte de “nós” resulta num “Nós” que é certamente maior do que a soma das suas partes.

E isso traz-me ao foco desta reflexão: o valor dos conjuntos musicais no desenvolvimento da socialização e interação. Conforme uma pesquisa de Volpe, D’Ausilio, Badino, Camurri e Fadiga, músicos, e sobretudo músicos em conjuntos, são peritos numa forma de interação social caracterizada pela comunicação não-verbal em tempo real, ou seja, conseguem codificar e descodificar mensagens subtis produzidas pelo corpo, com o objetivo de estabelecer e manter um objetivo partilhado. Produzem e reagem ao mesmo tempo. São sensíveis a mensagens não-verbalizadas do seu interlocutor, sendo essa uma das mais importantes qualidades de um bom comunicador. Até nos ensembles de jazz, foi indiciada, numa pesquisa de Berliner, a capacidade de “estar na onda” (finding the groove) para encontrar a energia coletiva para a música. Por isso, a música tem um efeito forte na atividade social e é utilizada para formar ligações afetivas (bonding), sendo também importante para a sobrevivência da comunidade.

O efeito da música numa situação de congregação social inclui o sentido de participação que se torna numa experiência de um “Nós” que envolve todos os presentes, segundo um artigo de Lieff. A música traduz-se automaticamente no sentido da comunidade e sensação partilhada de movimento. Faz parte da interação nessas situações a perceção de “eu” como parte de algo maior. Esta função da música, que aumenta a colaboração e a socialização, é talvez mais importante para a evolução. A sensação da colaboração faz diminuir a tensão e conflitos e promove empatia, através da experiência partilhada, conduzindo assim a uma maior coesão social.

É claro que a vontade de se sentir parte de um grupo continua a ser uma das tendências mais básicas do ser humano, sendo extremamente importante que essa experiência faça parte da experiência de qualquer jovem. Poder, querer e saber contribuir a sua capacidade e experiência para a concretização de um objetivo comum é, em si, uma ação de formação pessoal que pode, e deve, continuar ao longo da vida, pois todo o ser humano precisa primeiro de conseguir a sua sintonia interna, para depois se poder compatibilizar com o mundo que nos alberga. A Música, neste sentido, é uma ferramenta privilegiada e provada, e um conjunto musical, seja isso uma banda, orquestra, combo, coro ou ensemble, é um berço acolhedor e alimentício – uma aposta para um futuro de paz, colaboração e entendimento.