Crónicas

Os mortos

Nos sonhos, eles estavam vivos, tinham conversas como aquelas que eu ouvia, davam opiniões, sentavam-se nos lugares que eram deles quando estavam vivos.

Lembro-me de ser miúda e de ouvir as conversas das minhas tias tarde adentro, ainda antes da idade de ir para escola. As mulheres falam, falam muito, disto e daquilo e as minhas tias e a minha mãe não eram diferentes. E, ali, à porta do quarto da televisão da casa do meu avô – um anexo em terraço onde se meteu a televisão no espaço pensado para o forno a lenha – falavam do tempo nublado, do que dava televisão e de flores. As minhas tias e a minha mãe gostavam de flores e eram capazes de fazer uma conversa com pés de orquídeas, azáleas, camélias e os fetos, que ficavam bem no canto da casa.

Mas as tardes eram grandes e a conversa corria das flores para a política. Os preços não paravam de subir e o meu pai vivia de biscates. O trabalho na firma de constução desaparecera nos anos complicados do processo revolucionário em curso e a minha mãe preocupava-se, que não se sabia o dia de amanhã e queria uma vida diferente para os pequenos. Os pequenos éramos nós, o meu irmão e eu. O meu irmão andava por ali, a pescar lagartixas de anzol e eu fazia de distraída, enquanto observava o movimento de um carreiro de formigas.

Às vezes, fazia-se um silêncio, como se todas tivessem perdido o assunto ou a vontade de falar. Ao longe, um cão ladrava e, no galinheiro, as galinhas davam sinal, havia ovos. A minha tia Alice, que costumava cabecear em cima do caseado do bordado, despertava, que eram horas do café, que o mês de São João era mesmo de sono, que até tinha dado sonhado. A minha tia Alice sonhava muito e contava os sonhos, quase todos com os meus avós e bisavós, pessoas que tinham morrido antes de eu nascer ou de quem tinha apenas memórias vagas.

Nos sonhos, eles estavam vivos, tinham conversas como aquelas que eu ouvia, davam opiniões, sentavam-se nos lugares que eram deles quando estavam vivos. A minha avó regressava austera, o meu avô ia, ainda de noite, ordenhar as vacas e o meu bisavô, o do retrato no quarto da televisão da casa da minha tia Alice, tinha outra vez quase 100 anos e via passar os dias na loja da casa velha. E o meu tio avô, que puxava de uma perna por causa da poliomielite, tratava das contas e lia as revistas que assinava. O tio cambadinho era muito inteligente, tinha gosto pelos livros e era para estudar, não fosse a doença o ter deixado assim, a puxar de uma perna.

E as minhas tias e a minha mãe regressavam, naquelas tardes, ao tempo em que tinham sido crianças e novas. Lembro-me de como era difícil imaginá-las em crianças ou mais novas, eu tinha a impressão que elas tinham nascido assim, já mulheres de meia idade, com o cabelo a ficar branco, enfiadas em roupas de andar por casa, mas a quem as memórias iluminavam os rostos. Por uns momentos, falavam dos lanches em casa da minha bisavó, que, quando não havia mais nada, servia rodelas de limão com açúcar àquelas cinco netas, de quem parecia gostar muito. Nas fotografias, parecia uma senhora dos filmes de cowboys, assim como o bisavô.

Tinha morrido 10 anos antes do marido, a minha mãe não teria mais de 16 anos e a história da sua bondade e simpatia continuava ali, num mundo com televisão e telefone. A minha tia Teresa parecia-se muito com ela, de cara e de coração, embora fosse a mais tímida daquelas mulheres que se sentavam ali no terreiro. Lembro-me de como se ocupava com o jardim, as árvores e, como, durante anos, geriu o que sobrou da fazenda do meu avô e bisavô. Comigo dividiu segredos, cumplicidades, comprou-me muitos dos meus livros e gelados na vinda da procissão de Nossa Senhora da Visitação. Até fomos ao funeral do bispo Santana.

Esta semana sonhei com ela, com a minha tia Teresa, assim como a minha tia Alice ainda sonha com o tio cambadinho. A memória daquela senhora magra, morena e muito reservada ainda aqui está, nove anos depois de se ter ido, tão discretamente como viveu.