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396 horas...

Ele tem o dom de dar sentido àquilo que eu, simples mortal, considero incompreensível à partida

Não deviam de ter mais de três anos. Idênticas na sua gemealidade, desciam a rua de mão dada com a mãe, uma de cada lado, e sorriam ao mundo. Traziam saias de ganga que mais pareciam de balão devido à fralda que assomava por entre folhos azuis, denunciando-lhes a idade. As camisolas eram rosa e de flanela confortável e os sapatinhos brancos calçavam meias de renda da mesma cor. Um pormenor mais gracioso ainda era o chapéu de palha e fita rosada que lhes complementava a indumentária deixando adivinhar o amor da mãe quando as vestiu naquela manhã. E vinham felizes, descendo a rua juntamente com a brisa que soprava impelindo-as ao riso enquanto a mãe conversava com a amiga. Uma lufada mais atrevida roubou o chapéu à menina do lado direito, mas, prontamente, uma jovem que passava lho enfiou na cabecinha de fios castanhos. A mãe não deu por nada. Mas ela, a menina do lado direito, sim. E por isso voltou a rir feliz quando a brisa teimosa lho arrebatou outra vez. Parou então obrigando a mãe a parar também e, dona de si, debruçou-se e num só gesto levou de novo o chapéu à cabeça, olhando a sorrir para mim. Para mim que assistia à cena dentro do meu carro e que, em frações de segundos, naquela troca de olhares, fui tocada por uma paz infinita. E lembrei-me dele... Não que o tivesse esquecido sequer um minuto – como poderia? – mas lembrei-me dele imaginando-o ali a olhar para essas crianças, para essa inocência feita gente. E vi a ternura que os seus olhos refletiriam ao ver mãe e filhas e ouvi a gargalhada cristalina que daria ao ver o embaraço da menina do lado direito em luta com o vento e não tive dúvidas de que ele correria para lhe apanhar uma e outra vez o seu chapéu de fita rosada que colocaria quantas vezes fossem precisas na sua cabecinha de cabelos luzidios mas não sem antes os acariciar com amor. Porque ele é a personificação da bondade, da serenidade, da própria poesia ou não fosse ele também um poeta capaz de transformar a realidade mais árida em algo profundo e belo.

Brilhante na aceção da palavra, ele tem o dom de dar sentido àquilo que eu, simples mortal, considero incompreensível à partida. Muito do que sei devo-o a ele, a horas intermináveis de conversa que me ajudaram a reinventar os cacos que ficaram de mim sempre que a dor e a desilusão bateram à minha porta. Porque a “vidinha”, como ambos costumamos chamar-lhe, nos prega partidas que se não soubermos relativizar nos mudam para pior. Ele é o meu bastião, capaz de escutar a minha voz quando os outros nem sequer a ouvem. Condensa em si a humildade sem limites que só a sabedoria permite. E eu amo-o como só se pode amar alguém como ele. Com a mesma fraternidade, a mesma pureza, a mesma simplicidade com que ele ama a leitura, os livros, Vergílio Ferreira e, sobretudo, o ser humano na sua mais absoluta imperfeição.

Ele chama-se Luís Mourão, o único verdadeiro amigo que alguma vez tive, tenho ou terei na vida. Morreu há pouco mais de duas semanas, levando consigo muito de mim. Morreu há cerca de 396 horas, no mês do meu aniversário... e eu ainda hoje não consigo usar o pretérito perfeito quando penso nele. Nunca conseguirei. Porque, para mim, ele será sempre o presente, a poesia, a amizade, a certeza de que o ser humano pode ser, indubitavelmente, a melhor criação da natureza e de si próprio. Tantas saudades de ti, meu querido Luís...