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“Esta é a primeira vez que te minto”

Há sempre alguém que nos tenta enrolar, que nos quer conduzir para onde lhes dá mais jeito

O tempo acelerado em que vivemos, onde os produtos processados estão na linha da frente do nosso consumo, sejam alimentos, roupas, utensílios, cultura, amizades, ideias ou informação, deixa pouco espaço para o pensamento, criatividade e reflexão. Para acompanhar o ritmo da sociedade moderna, o mais fácil é comer o que nos põem à frente, já mastigado e pronto a engolir, mas será que isso não retira intensidade e profundidade à vida que vivemos? Uma densa chuva de estímulos, com que somos constantemente bombardeados, convida-nos a embarcar na onda em que todos se deixam ir, e fica em nós a sensação de que quem não reage naquele segundo, quem para para pensar, quem escolhe dedicar tempo às coisas, às pessoas e às ideias, corre um sério risco de ficar para trás.

No entanto, ainda assim, ou talvez por isso mesmo, pensar, refletir, continua a ser uma das minhas atividades preferidas. E nesses pensamentos, procuro aprofundar ideias, analisar pormenores, avaliar novas perspetivas. Em alguns momentos, por mero acaso, sem nada a propósito, surgem-me questões como se o meu subconsciente quisesse desafiar o consciente racional. Foi o que aconteceu recentemente com o seguinte desafio: Se se aproximasse alguém e me dissesse “esta é a primeira vez que te minto”, indo embora sem mais palavras, que mentira me tinha dito? Ou será que tinha falado verdade? Numa primeira abordagem podemos tentar perceber se aquela afirmação é verdadeira ou falsa. Levantando a hipótese de ser verdadeira e, assim, ser a primeira vez que aquela pessoa me mentia, isso obrigaria a que essa mesma frase possuísse, ela própria, uma mentira, ou seja, que fosse falsa. No entanto, uma frase que constitui uma verdade, mas que, ao mesmo tempo, é também uma mentira, é uma impossibilidade lógica e, por isso, se efetivamente possui uma mentira, não pode ser verdade. Ou seja, não pode ser verdade que aquela fosse a primeira vez que me mentia. Efetivamente aquela pessoa mentiu-me, porque a lógica impossibilita que a frase seja verdadeira, e estando assente que me mentiu, para a condição de ser falsa só resta a afirmação de que foi a “primeira vez”. Recapitulando, mentiu-me porque aquela frase não pode ser verdadeira, pois para o ser obriga a que ela própria possua uma mentira (“esta é a primeira vez que te minto”), e possuindo uma mentira, pela lógica, não pode ser verdade... Não sendo verdade, e possuindo uma mentira, empurra-me para a conclusão de que aquela não tenha sido a primeira vez que me mentiu. E podemos andar nisto uma infinidade, dando voltas e regressando ao ponto de partida, procurando sempre um caminho alternativo. Eu não consegui sair desta lógica, mas talvez outros consigam. Está lançado o desafio.

Este tipo de exercício mental parece fútil e desnecessário, mas ajuda a defender-nos contra os muitos enganos que atentam contra nós, estejamos na condição de consumidor, de eleitor, de leitor ou de cidadão. Há sempre alguém, ou alguma organização, que nos tenta enrolar, que nos quer conduzir para onde lhes dá mais jeito. Há sempre quem queira fazer de nós carneirinhos, quem queira anular os nossos pensamentos, a nossa vontade própria, a nossa capacidade de raciocínio, para que estejamos amorfos e disponíveis a seguir as ambições e o narcisismo de um qualquer líder ou grupo predestinado, disponíveis para abraçar causas e interesses de outros ou, simplesmente, para consumir um qualquer produto das modas impingidas.

Pensar, refletir, não é uma perda de tempo, seja lá sobre o que for. É o exercício que dá força ao raciocínio e treina a nossa capacidade de análise lógica, competências fundamentais para que possamos defender a nossa integridade e a da sociedade em que vivemos.