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Material de enchimento

A natureza não suporta o vazio, e ocupa-o rapidamente. Se uma espécie desaparece de uma determinada área, outra irá ocupar o espaço deixado livre. Quando uns avançam, outros recuam. Quando uns deixam, outros aproveitam. Quando uns perdem, outros ganham. Mas não são só as leis da vida que se regem assim, também as leis da física seguem o mesmo princípio. Qualquer espaço vazio é ocupado, nem que seja pelo ar. Se despejarmos uma garrafa de água, ela encher-se-á, em simultâneo, de ar. E a melhor forma de lhe retirar o ar é enchê-la de água.

A sociedade humana também é avessa à vacuidade. A cada um dos nossos espaços físicos tem de estar sempre associada uma função, ou alguma coisa. As nossas mentes têm de estar sempre ocupadas, com um problema, uma diversão, uma ideologia, uma religião... O vazio assusta-nos e, nem que seja com entulho, temos de o manter preenchido.

Para quem gere a manutenção do poder, seja ele qual for, político, económico, religioso, desportivo, sabe perfeitamente os riscos que corre ao deixar espaços vazios, sejam ao nível da atividade ou das ideias e ideologias. Se não ocupar o espaço pode perdê-lo para os seus concorrentes, que estão sempre ansiosos por uma oportunidade. Mas há quem saiba muito bem como gerir a situação. Estar sem estar. Fazer sem fazer. Dizer sem dizer. Sentir sem sentir. Pensar sem pensar. O truque é utilizar material de enchimento, muito material de enchimento... Fazer de tudo um peluche, bem bonito e preenchido, mas sem conteúdo válido. Na prática é, como se costuma dizer, trabalhar para a fotografia.

Quando a comunicação social está condicionada pelos diversos poderes (político, económico, religioso, desportivo, ou outro), e não questiona nem investiga, torna-se mais fácil utilizar material de enchimento. Quando cada cidadão está dependente desses mesmos poderes, nomeadamente pelos seus empregos ou outras aspetos práticos da vida, mas também por simples afeição, não quererá questionar todo esse material de enchimento.

O material de enchimento cria a ilusão de que tudo está a ser pensado e cuidado, de que podemos dormir descansados porque há quem esteja a zelar por nós. Faz com que a nossa vida, individual, familiar, social, pareça preenchida, acautelada, orientada. E assim não surge em nós nenhum sentimento nem vontade de mudança. Vivemos felizes na ignorância. Mas tem algumas desvantagens... Passam os anos e os problemas persistem. Passam os anos e continuamos a ter violência doméstica, xenofobia, desequilíbrios ambientais, falhas nos cuidados de saúde, desadequação do sistema educativo, abandono da agricultura... Vai mudando apenas o léxico e o material de enchimento, e fica tudo na mesma.