Análise

Legislar o bom senso, porque não?

Há uns anos um anúncio publicitário ficou nos ouvidos de todos, numa época em que a internet ainda dava os primeiros passos e as pessoas não tinham outra alternativa a não ser assistir aos intervalos televisivos com abundantes doses de propaganda. Um detergente para lavar roupa que lavava mais branco do que todos os outros era uma das estrelas da companhia. A frase ficou na memória colectiva e ainda hoje muitos se socorrem dela em diversas ocasiões. Vem isto a propósito da mais recente polémica política à portuguesa, já designada por ‘Familygate’. Cada partido atira a pedra a outro, qual virgem imaculada nas nomeações políticas duvidosas que constam do respectivo currículo. O país descobriu (!), em 2019, que o Governo da República está pejado de gente com laços familiares entre si. Mas aos poucos vão saindo notícias que nos recordam que cada executivo, desde sempre, trata da sua família. Com os do falso imaculado Cavaco Silva à cabeça. ‘Jobs for the boys’, ‘assalto ao poder’, ‘sede de poder’, são máximas que não perdem validade nem actualidade, para mal de todos nós em geral e da democracia em particular. É correcto? Não, porque os comportamentos parciais dos políticos que nos representam cerceiam as possibilidades de gente habilitada, qualificada, séria e competente de aceder a lugares de topo, reservados para cada ‘família política’. Nada disto é novo, provavelmente agora em maior número, mas levanta sempre a questão da ética, de que quase todos fazem tábua rasa, mas que gostam de deitar a mão quando são arrasados pela verdade nua e crua e pelas críticas dos que votam.

O que se passa na República passa-se na Madeira. Desde sempre. Há mais de 40 anos que o mesmo partido por cá governa. Desde 1976 que os militantes do PSD-M ocupam a quase totalidade dos lugares de direcção e chefia da administração pública da Região. Os dirigentes chegam de diversos quadrantes ligados ao partido. A ‘jota’ vai produzindo deputados. Os filhos dos secretários e ex-secretários vão-se acomodando mal saem da universidade. Basta ver quem é quem nos lugares cimeiros ao longo das últimas quatro décadas. Há pessoas que se eternizam nos postos e que se reformam após uma carreira feita exclusivamente nos corredores do poder. Com ou sem mérito, mas sempre ao lado do partido. Não se cingem apenas aos gabinetes dos membros do governo ou dos presidentes de câmara, onde de facto tem de haver confiança pessoal e política. Falamos das direcções-gerais, inspecções, das empresas públicas e de outros cargos que podiam ser liderados por pessoas tecnicamente capazes sem terem de, obrigatoriamente, fazer fé da sua opção partidária. Na Região não tem sido assim e a teia estende-se às associações, às casas do povo e aos concursos feitos por medida para encaixar mais um ‘boy’. Tudo laranja. Tudo sob controlo. É óbvio que este ‘modus operandi’ prejudica a democracia, subverte os valores republicanos e faz da máquina governamental uma agência de emprego inacessível aos que tendo o perfil necessário, fiquem de fora.

Uma vez que são todos ‘pecadores’, cá e lá, negligenciando o princípio basilar da transparência, só há um caminho: legislar no sentido de impedir a eternização da pouca-vergonha por mais legislaturas. É que a opinião pública não suporta mais este estado de coisas, que os políticos teimam em perpetuar de forma ardilosa. Neste particular nenhum partido que governe consegue gabar-se que ‘lava mais branco’ do que o outro. Quem se chega à frente com uma proposta legislativa?