Vou dar os meus dois braços a torcer
Hoje vou dar o braço a torcer. Os dois braços. Por dois motivos. E um concelho.
Fui ao concerto da Orquestra Clássica da Madeira. Dizem que foi no fim do mundo. Mais de dois mil esqueletos sentados e de pé no Pavilhão dos Prazeres, para ter o prazer de ver as Ninfas e Sofia Escobar a encantar a malta, na noite fria e chuvosa.
A primeira razão de dar o meu braço esquerdo a torcer: o desejado Aeroporto Internacional da Fajã de Ovelha fez uma falta brutal naquela segunda-feira. Um engarrafamento numa noite durante a semana nos Prazeres foi um fenómeno pior do que os do Entroncamento. Demorei quase uma hora a entrar na Via Rápida, depois de sair do pavilhão. Venha de lá a pista e a torre de controlo. Com plano de contingência.
Estive no dito concerto, com casa cheia e gente de pé até a porta.
O segundo braço a torcer.
Há muitos anos, quando a Orquestra tocava apenas para os familiares dos músicos, era impossível pensar que, por causa de um maestro, de cabelo de quem parecia ter levado um choque elétrico e umas ideias paranormais, eu ia apanhar um engarrafamento nos Prazeres.
Goste-se ou não do tal de Rui Massena, e aí dou o segundo braço a torcer, o tipo deu a conhecer a OCM a mais gente do que seria imaginável, quando lhe passou pela cabeça, e pelo cabelo, a ideia peregrina de juntar aos músicos, quase todos estrangeiros na altura, a uns tipos da margem sul do Tejo.
O concerto da Praça do Município com os Da Weasel, em 2005, projetou a Orquestra como nunca. Nunca ninguém tinha ouvido falar daquela gente de vestes negras a olhar para um homem com uma batuta, vindo lá do norte para mudar a nossa forma de pensar.
Quanto ao concerto de Natal deste ano, depois de ter visto um engarrafamento na freguesia dos Prazeres numa segunda-feira de Dezembro, às onze da noite, passei a acreditar que existem milagres de Natal, acompanhados de uma orquestra de gente que se adapta a tudo o que herdou.
De Massena nem se ouve falar. E apesar da sua sombra ainda pairar sobre a história da Orquestra, a criação sobreviveu sem o criador. Da estrela da noite, Sofia Escobar, um agradecimento pela surpresa de ter casa cheia, mesmo no fim do mundo e da maturidade vocal das Ninfas do Atlântico fica a certeza de que ganhámos o dia, a viagem e o Natal.
Da Calheta, aquele lugar onde alguns pensam que fica para lá do lugar o vento faz a curva, ficou a lição de que tudo é possível fazer quando se quer descentralizar a cultura e oferecer qualidade.
Do público, ficou outra lição. Nós gostamos do que é bom, gostamos do que nos oferecem, mesmo que para isso tenhamos de procurar estacionamento num dia de semana à noite... na pacata freguesia dos Prazeres. População: 704 almas. Público no concerto: 2200 exigentes.