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Os novos e os nossos muros

A divisão molda a política a todos os níveis – pessoal, local, nacional e internacional. Cada história tem dois lados, e o mesmo se passa com cada muro

As políticas nacionalistas estão em ascensão e com elas os muros estão a crescer. Milhares de quilómetros de vedações foram erguidas nos últimos anos e estão a redefinir a nossa paisagem política.

Existem muitas razões para erguermos muros, já que há tantos temas que nos dividem: saúde, raça, religião, dinheiro, política. Na Europa, as ruturas da última década ameaçam não só a unidade europeia, mas também, em alguns países, a própria democracia. Na China, a necessidade de conter as divisões forjadas pelo capitalismo definirá o futuro da nação. Nos Estados Unidos, a justificação para o muro na fronteira com o México explora o medo americano.

Entender o que nos divide, no passado e no presente, é essencial para compreender tudo o que se está a passar no mundo.

Examinar os muros que nos cercam é fundamental. Ao negá-lo, ficamos por nossa conta e risco.

No entanto, temos visto crescerem, nos últimos anos, as barreiras, a intolerância, as manifestações de ódio. Ao mesmo tempo assistimos ao recrudescimento das divisões em novas “tribos”, com base na normalização da opinião, exactamente na época em que a tecnologia permitia o contrário: o livre debate, a aproximação entre vários pontos de vista, a discussão franca sobre as diversas perspectivas de olhar o mundo como diz Rui Tavares Guedes no último Courrier Internacional. Mas não há inocentes nesta história. Nem precisamos de percorrer o planeta até aos lugares mais recônditos e sinistros para o perceber. A melhor prova disso está entre nós, na Europa que depois da guerra e, acima de tudo, depois da queda do Muro de Berlim, proclamou querer afirmar-se como espaço exemplar da paz e da cooperação entre nações. Em vez de um espaço de acolhimento e de liberdade, a Europa transformou-se numa fortaleza – sem sentir vergonha disso.

Actualmente, há mais de sete dezenas de muros, rigorosamente vigiados, com cimento armado e arame farpado, a dividir fronteiras por este planeta fora e muitos planos para construir outros, ao mesmo tempo que se vão erguendo cada vez mais divisões, com o combustível da intolerância, até mesmo dentro das fronteiras de cada país.

Os muros físicos são fáceis de derrubar. Podem cair até numa noite, de forma rápida e inesperada, como vimos há 30 anos em Berlim. O problema é que, depois de retirados o betão e o arame farpado, as divisões não desaparecem de forma tão instantânea. Na Alemanha continuam visíveis as diferenças entre os alemães de Leste e os de Oeste. Trinta anos pode parecer muito tempo mas é muito pouco quando se pretende mudar mentalidades. As últimas notícias da Alemanha assim o provam.

Esse é, segundo Tavares Guedes, um dos grandes desafios que o mundo enfrenta nesta hora de profundas divisões: como conseguir derrubar aquilo que, no fundo, não se quer derrubar.

De facto os últimos tempos demonstram que as políticas nacionalistas regressaram em força, milhares de quilómetros de vedações foram erguidos e, aos poucos, até as divisões mentais se acentuaram através da proliferação do medo e da raiva. Perceber como nos temos dividido, tantas vezes sem nos darmos conta, é essencial para compreender as mudanças que abalam hoje o mundo como nos conta no seu último livro Tim Marshall em “A era dos muros”.

Pois, desde os primórdios que prezamos o nosso espaço. Agrupamo-nos em tribos sentimo-nos alarmados perante a presença de muitos forasteiros e respondemos àquilo que vemos como ameaças e não atitudes muito humanas. Criamos ligações importantes para a sobrevivência, mas também para a coesão social. Desenvolvemos uma identidade de grupo, e é frequente isso levar a conflitos com outras pessoas. Os nossos grupos competem por recursos, mas existe também um elemento de conflito de identidade – uma narrativa de “nós e eles”.

No entanto, estas divisões físicas são espelhos daquelas que existem na mente – as grandes ideias que guiavam as nossas civilizações e nos deram uma identidade e uma sensação de pertença – como o grande cisma do Cristianismo, a divisão do Islão em sunitas e xiitas, e, na história mais recente, as batalhas entre o comunismo, o fascismo e a democracia.

Tudo se resume, como disse, a este conceito de “nós e eles” e aos muros que construímos nas nossas mentes. Por vezes, o “outro” tem uma língua ou cor diferente; uma religião diferente ou outro conjunto de crenças.

Numa altura de receio de instabilidade, as pessoas continuarão a agrupar-se, a proteger-se contra aquilo que percecionam como ameaças. Essas ameaças não vêm unicamente das fronteiras. Também podem vir de dentro... como a China bem sabe... diz Tim Marshall no livro que já referi, que a codificação dos direitos humanos reconhece que pelo menos em teoria, os seres humanos são todos iguais. Construímos grandes espaços para nos reunirmos, discutirmos e tentarmos resolver as nossas diferenças. As Nações Unidas, a União Europeia, a União Africana, a OPEC, NATO, o Banco Mundial e centenas de outras organizações pan-nacionais e globais foram todas criadas com o intuito de ajudar a unir-nos e mediar os nossos conflitos. São reconhecimento formal da condição humana, e através delas as mega tribos tentam resolver as suas diferenças, mantendo os seus muros enquanto procuram soluções mais duradoras.

Assim, embora presentemente o nacionalismo e as políticas de identidade estejam novamente em ascensão, existe o potencial para o arco da história tornar a virar-se para a união.

A divisão molda a política a todos os níveis – pessoal, local, nacional e internacional. Cada história tem dois lados, e o mesmo se passa com cada muro. É essencial estarmos conscientes daquilo que nos dividiu, e que continua a fazê-lo, de forma a compreendermos o que se está a passar no mundo de hoje.

Porque o amor contagia e o testemunho arrasta corações: só vos posso desejar um Santo Natal...