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In loco parentis

Os mais assíduos protagonistas das capas dos jornais internacionais nas últimas semanas, e até meses são, não contando os da “História sem fim” chamada de Brexit, o infame ex-produtor Weinstein, o recém-suicidado (?) pedófilo Epstein e o seu “ora sim ora não” amigo, Duque (ainda) de Iorque.

Não é de estranhar que as figuras públicas, pertencentes ao jet set dos privilegiados, seja pela profundidade dos seus bolsos, cor mítica do seu sangue, ou por alguma capacidade frequentemente ampliada até mais não pela maquinaria do marketing, atraem de tal maneira a atenção pública. Querendo ou não, eles representam um exemplo que a gente “regular” quase não consegue ignorar, tal o poder da publicidade ubíqua. Um exemplo, pelo bem ou pelo mal. Um microcosmo dos “deuses”, a ser avidamente seguido nas redes sociais do macrocosmo “plebeu”. Seguido e, infelizmente, imitado. Pelo bem ou pelo mal. A tal história de os antigos homens terem construído e povoado os céus de uma forma antropomórfica. Só que depois, já habituados de inclinarmos a cabeça para cima, para tentarmos vislumbrar os deuses que do alto troçavam de nós e nos humilhavam, povoámos os céus com exemplares escolhidos “a dedo” do nosso universo humano, para nos servirem de...exemplos? Objetos de veneração? Fontes de ciúmes e inveja? Bússolas de verticalidade da postura moral e integridade ética? Ídolos? Nem sempre. Nem sempre, de longe.

E quantos deles, em posições de autoridade, poder e domínio, demonstram a sua autoassumida omnipotência tanto ignorando o papel nobre e digno teoricamente imanente à sua posição (merecida ou não, isso é uma outra questão) na sociedade como aproveitando-se das fragilidades e inseguranças dos seus súbditos, e satisfazendo os seus instintos mais depravados em detrimento das vidas e do futuro das suas vítimas?

Entre essas “estrelas” do céu humano, muitas foram e são ativos na área de música. Se no âmbito do conceito da “acusação histórica” de assédio sexual fossem examinadas as atividades das bandas famosas dos últimos 60 anos, sejam elas de pop, rock ou outro género, o que se provavelmente revelava sobre a sua interação com todo esse universo de idólatras chamados de “groupies”, meninas e meninos quase sempre menores, que as acompanhavam por todo o lado e em todas as ocasiões?

A música erudita não é isenta, infelizmente, dessas tendências. Provadas ou não, nos últimos anos, e sobretudo depois do crescimento do movimento #metoo, começaram a surgir histórias e acusações sobre as atividades de alguns dos maiores nomes da área, nomes como os grandes maestros James Levine, Charles Dutoit, e Daniele Gatti, o tenor e maestro Plácido Domingo, o venerado concertino da Orquestra de Cleveland, William Preucil, agente artístico Bernard Uzan... Histórias de abuso de poder, avanços não solicitados, chantagens e pressões, ostracismo... E depois, os departamentos de música nas escolas - nos EUA: Cincinnati College-Conservatory of Music, Curtis Institute de Filadélfia, University of Connecticut, College of Charleston, University of Iowa; no Reino Unido, todas as cinco especializadas escolas de música, (Chetham’s, Yehudi Menuhin, ...) - todos com casos de professores em posições de poder, com comportamentos inadequados, frequentemente com múltiplas acusações. E estas são apenas aquelas que vieram à luz do dia e aquelas que envolveram jovens abaixo da idade de consentimento, pois as relações entre professor e aluno, mesmo com o consentimento são, de qualquer maneira, na maioria das escolas, vetadas por razões éticas.

No Reino Unido, conforme uma estatística recente, quase metade (48%) dos músicos já tiveram experiências negativas com assédio sexual, mas cerca de 85% deles nunca o comunicaram, devido à cultura específica do meio musical. Essa mesma cultura é identificada por 55% dos inquiridos como a maior barreira para a comunicação. Nas escolas britânicas, professores de género masculino foram responsáveis por 70% das participações, das quais mais de metade tinha uma dimensão sexual. E se a União Nacional de Educação do Reino Unido alerta que, no total, não se trata de mais de um milésimo dos 500 mil professores nas escolas britânicas, as vitimas deste milésimo provavelmente não encontram nesse facto nenhum consolo e o mesmo não lhes ajudará a recuperar a inocência das suas vidas. Nenhuma apologética será capaz de substituir a prevenção e a insistência na integridade do educador, pois ele, desempenhando o seu papel com pleno sentido da responsabilidade, tanto “in loco parentis” na escola, como em articulação com os encarregados, deverá ajudar a dar o exemplo aos seus educandos, protagonistas do nosso futuro, no qual todas as acusações, históricas e mais recentes, passarão a ser lições bem estudadas, aprendidas e nunca mais repetidas.