Crónicas

A entrada certa do metro

Quando olhava para a frente, parecia-me fácil, só podia ser simples, Lisboa não seria mais do que um Funchal maior, com ruas mais largas e mais trânsito.

Os últimos meses de 1989 foram chuvosos e é estranho que me lembre disso, mas há memórias que se colam à nossa história. Aquele outono de dias feios, passeios molhados e lodo nas paredes remete para o momento em que o mundo estava quase a deixar de ser aquela curva de caminho no Laranjal, aquele tempo calmo, sossegado que antecede todas as nossas mudanças.

Eu não sabia o que tinha pela frente, de como era Lisboa, do como era viver só, nem sabia como era um avião por dentro e não suspeitava que duas semanas a tentar descobrir a saída certa do metro seriam suficientes para mudar quase tudo em mim. Da menina da mãe e das tias, que gagueja de vergonha a pedir um café, haveria de nascer uma jovem capaz de ir onde fosse preciso. Facto que, naquele Novembro em que no leste da Europa se levantava numa revolução de veludo, eu ainda não sabia.

Quando olhava para a frente, parecia-me fácil, só podia ser simples, Lisboa não seria mais do que um Funchal maior, com ruas mais largas e mais trânsito. Em casa, no meu quarto de sempre, com o almoço a horas e a roupa passada, não conseguia antever hesitações, não me imaginava a chorar num banco de jardim, paralisada pelo desespero de estar só, num lugar estranho, sem uma cara conhecida.

Enquanto matava o tédio no cinema e tentava convencer a minha mãe a copiar os modelos de roupa das revistas de moda francesas, não me parecia possível sequer que o meu audacioso plano fosse beliscado pelo medo. Eu não me podia dar ao luxo de ter medo, nunca me permitira a tanta fraqueza. E era assim desde que enfrentara o meu irmão, caçando de cima do muro do caminho uma lagartixa das gordas.

Vinha dele, do meu irmão que viera acabar a tropa perto de casa, o apoio intransigente, a voz que afastava as dúvidas, que me apresentava aos amigos de sorriso rasgado e falava dos meus planos como se fossem seus também. A irmã que ia estudar e a quem nunca perdoaria se voltasse para trás, fosse qual fosse a desculpa. Lisboa não podia ser mais difícil do que vencer o nojo das barrigas brancas das lagartixas ou meter o dedo da rede do galinheiro sem temer as bicadas do galo.

E meses mais tarde, quando me vi ali, na cidade grande, tomada pelo desalento, sem saber o que fazer a não ser sentar-me a chorar no banco de jardim, o medo de desiludir o meu irmão ganhou às saudades de casa. Eu limpei os olhos com as costas da mão, levantei-me e fui tentar descobrir, pela quarta ou quinta vez, onde era a entrada certa do metro.