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Debaixo do Equador

A aculturação é um fenómeno de todos os tempos e todas as culturas, e funciona nos dois sentidos

Chico Buarque de Holanda compôs uma canção que começava assim:

“Não existe pecado do lado de baixo do Equador

Vamos fazer um pecado rasgado, suado, a todo vapor...”

O clima tropical tem destas coisas. As coisas que criaram sociedades crioulas, no tocante ao Brasil teorizadas por Gilberto Freyre pelo no “luso-tropicalismo”.

Mas não só nos trópicos: a aculturação é um fenómeno de todos os tempos e todas as culturas, e funciona nos dois sentidos – apesar das diatribes dos defensores das culturas superiores e das raças de senhores.

A América do Sul, no seu todo, constitui um cadinho capaz de irradiar marcos culturais – e não apenas o samba ou o tango. Importou o imperialismo e a escravatura, mas exportou ideias e revoluções.

Uma página negra da sua História foi a Guerra do Paraguai (1864-1870), em que este país enfrentou uma aliança esmagadora formada pelo Brasil, Argentina e Uruguai. Independentemente das razões do conflito, este saldou-se por uma carnificina em que pereceram entre 75 a 90% dos paraguaios adultos (conforme as fontes). Nem as crianças escaparam: à falta de homens, na batalha de Acosta Ñu morreram cerca de 4.000 crianças, num massacre sem precedentes. Só na segunda metade do século XX se tornou a recorrer a crianças-soldados - o que levanta a questão sobre onde é que está, afinal, o Progresso da Humanidade.

O Paraguai ficou destroçado e despovoado, e a solução encontrada foi recorrer à poligamia. Assim começou a reconstrução do país, curiosamente com o aval da Igreja Católica. De forma pragmática, permitiu-se contornar uma situação desesperada. Não houve, portanto, pecado abaixo do Equador.

Século e meio depois, levanta-se o problema da envangelização da Amazónia. Distâncias enormes, percursos difíceis, falta de vocações: quanto basta para compor uma situação aparentemente insolúvel.

Ou não?

Para obviar este estado de carência, propõe-se a ordenação de padres casados e a criação de diaconisas, que possam prestar assistência às comunidades espalhadas pela selva, à mercê dos elementos, das doenças, das feras, mas sobretudo do bicho homem.

Não faltará quem grite “aqui del rei”, do conforto das suas poltronas, do ar condicionado e da assistência médica de primeira.

O atual Papa vem do lado de baixo do Equador. Mais propriamente da Argentina, co-autora do massacre dos paraguaios – história que decerto ele bem conhece. Como conhece os casos de necessidade dos barrios, das favelas, do crime organizado, das ditaduras.

Com a simplicidade e a determinação que lhe conhecemos, decidiu encarar o problema de frente. Agora, é com as comissões e com os teólogos, mas as coisas não serão como dantes.

Porque se no Paraguai houve que encarar uma crise que se resolveu em duas gerações, as questões do celibato dos padres e da ordenação de mulheres não são conjunturais.

Porque pecado, do lado de baixo de Equador, é ignorar os problemas e enterrar a cabeça na areia.

Que mais exportará a América Latina?