Crónicas

A televisão

A televisão mudou-nos, ao meu irmão e a mim, dois miúdos iguais aos outros todos que, nos anos 70, corriam pelos caminhos, becos e ladeiras dependurados nos camiões carregados de canas ou em cima de carrinhos de caixas de esferas, com livre trânsito à fazenda. A única preocupação era chegar inteiro a casa, ao anoitecer, mas joelhos esfolados, topadas em pedras, trambolhões pelas escadas ou debaixo da latada não contavam como acidentes e não vinham sequer à conversa à noite, à hora de ver o telejornal e a telenovela.

O nosso mundo não tocava o universo da minha mãe e menos ainda o do meu pai, que trabalhava muito e quando se sentava no sofá era para dormir. Os adultos viviam noutra esfera, numa dimensão mais ou menos estranha, enquanto nós, os miúdos, vivíamos durante o dia e sonhávamos à frente da televisão. O meu irmão foi o primeiro a deixar-se levar, que aquilo só podia ser magia e todos os rapazes querem ser mágicos. Não demorou muito a querer ser o homem das notícias, mas andou preocupado, andámos preocupados já que assim à primeira não dava para ver como é que as pessoas cabiam dentro das telefonias e dos televisores.

Não sei quem nos explicou como era. Talvez o meu primo Vítor, que era mais velho e percebia de circuitos eléctricos ou o Marçal, o sobrinho do meu tio Humberto que trabalhava na Marconi e às vezes vinha endireitar a antena. Foi ele que explicou que a imagem na nossa televisão andava sempre tremida por causa de se apanhar o sinal pelos eucaliptos. O lugar não era bom, mas a gente via assim mesmo, não era clarinho, clarinho, mas dava para ver os desenhos animados, os filmes de cowboys, de piratas e aquelas histórias de amor das telenovelas que a minha mãe dizia que eram tal e qual como na vida real.

O que era esticar um bocado a imaginação já que não havia homens tão bonitos, nem raparigas tão vistosas lá por cima no Laranjal, mas também interessava pouco. A nossa cabeça rodava a mil com o espaço, com os fenómenos como a chuva de sapos e a caveira de cristal apresentados pelo Arthur C. Clarke, os mistérios das pessoas desaparecidas e documentários sobre a Índia e as expedições aos Himalaias. Acho que, nessa altura, queríamos ser cientistas, aventureiros e relatar tudo num programa de televisão por ter a certeza que, do outro lado, estariam miúdos como nós espantados pelo tamanho da Terra e a diversidade de modos de vida, de formas de vida.

A televisão era como ter uma janela para o mundo, era mágica, misteriosa e estava na sala, passava os dias desligada não fosse estragar-se pelo uso, mas às vezes acendíamos, nem que fosse só para ver aquela mira técnica com a barra de cores ou aulas da Telescola, a única coisa que passava à tarde. E era cá uma inovação, muita gente fez o ciclo preparatório pela Telescola. Nós não, a minha mãe dizia que isso não tinha jeito, escola era na sala de aulas, com professores ao vivo e de carne e osso, mas vivíamos outro tempo e a dimensão virtual das coisas não era para aquelas cabeças, nem para as nossas.

Mudou-nos. Passamos a brincar ao que dava na televisão, a falar dos programas, a suspirar pelos filmes, pelo próximo episódio, a correr para chegar a tempo e, nos primeiros anos, a conviver em casa de quem tinha televisão. Todos os domingos, antes do meu pai comprar a nossa, íamos ver a Heidi e o Homem e a Terra a casa da minha tia Alice, os amigos do meu primo vinham para o futebol e para os jogos olímpicos. Lembro-me de os ver de barbas e cabelos compridos e socas nos pés no quintal, enquanto o meu irmão e eu fazíamos passeios debaixo da vinha e discutíamos o mistérios dos pombos, que regressavam sempre ao pombal. O meu primo tinha um.

Havia quem tivesse medo, quem dissesse que a televisão a cores fazia mal à vista, alguns proibiam os filhos de ver por causa da violência, que aquilo não era bom, que iria causar desarranjos nas nossas cabeças ver as imagens das guerras nas notícias e filmes com pessoas quase nuas. O que era manifestamente um exagero comparado com tudo o que veio depois. E quando penso naquela velha Decca, que ainda anda lá por casa do meu pai, o que me vem à cabeça é a imagem de dois miúdos empolgados, entusiasmados com o que chegava. Os adultos eram filhos da rádio e da telefonia, nós éramos a primeira geração de filhos da televisão.