Crónicas

O fim-de-semana do rali

A possibilidade de usar um chapéu como o do Indiana Jones e calçar umas botas de montanha tornava tudo tão bonito como ir de férias para um hotel com piscina.

Nascer rapariga era uma desvantagem para coisas como ir acampar no fim-de-semana do rali ou simplesmente para ir acampar noutro dia qualquer. De maneira que mais valia calar a desilusão, comer um gelado na festa do Santíssimo na paróquia e esperar que o meu irmão acordasse para contar como tinha sido lá no Chão da Lagoa enquanto cá por baixo ouvíamos a classificação nos noticiários da rádio. A mim não me interessavam os carros, nem os pilotos e menos ainda que o rali fosse uma etapa do campeonato da Europa.

De carros e pilotos conhecia um, que conduzia como um louco e tinha uma oficina perto do Trapiche. Às vezes, ouvíamos, o sítio inteiro ouvia, o carro do Zé Camacho dos ralis a descer o Caminho do Laranjal e era cá uma sensação. Eu sentia-me importante só por isso. Quantas miúdas da escola podiam dizer que tinham um vizinho nos ralis? Para mim era a única carta para jogar quando, no princípio das aulas, lhes dava para contar as aventuras na serra a ver carros a passar.

Eu cá só tinha o Zé Camacho e a sua oficina, onde parava parte da malta dos ralis, mais as histórias que o meu irmão contava depois de dormir umas 16 horas seguidas. Lembro-me de como me fazia impressão ter tanto sono, mas também é verdade que não fazia a mínima ideia do que era acampar, comer atum com batatas cozidas e passar dias sem tomar um banho decente. A possibilidade de usar um chapéu como o do Indiana Jones e calçar umas botas de montanha tornava tudo tão bonito como ir de férias para um hotel com piscina.

Não que soubesse o que era hospedar-se num hotel. A primeira vez que fiquei num tinha 23 anos e não resisti a levar de recordação os sabonetes pequeninos da casa de banho. E fiquei sem saber o que escolher da mesa do pequeno almoço, mas aconteceu o mesmo quando fui almoçar fora pela primeira vez e pedi comida a mais. O empregado olhou-me de alto a baixo acho que para certificar-se da minha ignorância. Só que isso foi muito tempo depois daquelas segunda-feiras a seguir ao rali, quando ia de dez em dez minutos ver se o meu irmão tinha acordado.

Primeiro chegavam as histórias, depois as fotografias cheias de grão com adolescentes na levada, entre o verde da serra e de sorrisos felizes. Eles estavam vivos, eu marcava passo suspensa naquela casa da curva da estrada onde ser rapariga era o cabo dos trabalhos, um extenso caderno de impossibilidade. Ter 14 anos era tão difícil, dava a ideia de que ia ficar ali para sempre, agarrada às saias da minha mãe, que nunca mais chegavam os 16, 17, 18 anos, a vida adulta e o direito a mandar em mim.

O direito de ir acampar, de gostar ou de não gostar de ver carros a passar a toda velocidade nas curvas da serra, o direito de decidir o que fazer do tempo livre, das folgas e das férias sem esperar pelas histórias dos outros. E eu não gosto de carros, nem de ralis, mas ainda hoje gosto de ouvir os relatos de viagens do meu irmão quando ele decide partilhar. Faz-me voltar ao melhor da adolescência, aquela cumplicidade ao almoço na segunda-feira a seguir ao rali, entre o bife grelhado e o arroz de doentes queimado com a minha mãe a gritar que em casa ninguém sentia o cheiro do arroz a queimar.