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A Fome e a Sede

É essa humanidade que faz de “No Reservations” um dos melhores programas de sempre

Morreu Anthony Bourdain, uma das poucas pessoas que ia admirando à distância. Os obituários, sumários, dispensam-no com o rótulo de “celebrity chef”, mas a expressão é tão redutora que chega a ser mentira.

Bourdain teve um ofício. Cozinheiro em Nova Iorque durante dez anos, foi nos dez anteriores lava-pratos, pica-cebolas, cozinheiro de linha e sous-chef. Isto nos anos 80 e 90, quando a cozinha era ainda um refúgio de marginais, um laboratório de perigo – o reino da faca, do tempo e do fogo, um ensaio de morte, decadência e ressurreição, onde não se abusa apenas da manteiga.

As palavras são dele. Em 1999, Bourdain escrevia “Don’t eat before reading this”, um relato brutal, cómico e honesto sobre as manhas, as manias e as redenções da alta cozinha. Esse texto rico, vivo, irónico, musical, é hoje o que foi desde sempre: alta literatura. E o encontro de um homem com o seu destino.

Porque estávamos na América, seguiu-se o convite para o livro, e logo depois a televisão. Um programa de viagens, narrado por um tipo que não era, à data, particularmente viajado. Alguém já vira então nele o que Christiane Amanpour, da CNN, viria a comentar nas horas seguintes à sua morte: Bourdain era “profunda, profundamente humano”.

É essa humanidade que faz de “No Reservations” um dos melhores programas de sempre. Bourdain não é um turista lambareiro. É um beatnik sem a mescalina, uma estrela rock sem a brutalidade, um homem culto e bem-parecido sem a altivez, um contador de histórias sem o ego. Há ali trabalho – e obsessivo –, e claro o simulacro da televisão. Mas há também curiosidade adolescente, uma busca cândida pela diversidade, na crença genuína de que aí se encontra força, beleza, esperança.

No Reservations era televisão de autor. O Mundo partia, em Bourdain, sempre do indivíduo, e sempre dele próprio. A última refeição no El Bulli, o silvar das balas em Beirute, o fedor a enxofre nas Furnas, a matança do porco em Nova Orleães, exibiam-se-nos unidos pelo laço invisível de sentido de Bourdain, que – com a notória excepção dos vegetarianos – era de compreender e não de julgar. Esta generosidade era a parte maior do encanto que nos fazia viajar através dele.

Pensando no que nos falta, é difícil não pensar em algo que Bourdain tinha. Estilo, carisma, graça, comando da linguagem, propósito. Mulheres, dinheiro, reconhecimento. Enchidos, marisco, jamón. Comer, viajar, ser – por absurdo – pago para isso.

Tudo isto agrava a perplexidade de Bourdain ter tomado a sua própria vida. Em muitos sentidos, era um modelo de homem moderno. Alguém que se deleita na procura, no caminho, para quem a felicidade e a transcendência se apresentam como revelações, fugazes momentos de prazer ao fim de uma peregrinação penosa, mas recompensadora. Bourdain parecia matar a sede que amaldiçoa os restantes de nós. Caindo ele, cai também um pouco da esperança de a matarmos um dia.

Noutro lado, Tolentino de Mendonça publica o “Elogio da Sede”. E comenta, a propósito, na Renascença que “a sede é reduzida a um gesto de consumo (...) a hiperestimulação de desejo está a gerar uma incapacidade de desejar. As pequenas sedes que nos absorvem tornam-se um obstáculo para viver a grande sede; de sentido, de verdade, de beleza, de absoluto ou de infinito”.

Uma sede que não consome nem se consome por obra e graça de nós próprios. Uma sede moderna, sedutora, enaltecida, que viaja connosco e não nos abandona. Uma sede que nos faz ansiar pela vida de Bourdain, ignorando que mais depressa nos aproxima da sua tragédia do que da sua glória. Uma sede que nos torna a todos um pouco mais sós. Pode ser redutor. Mas não é mentira.