O mundo no telefone

Mas nós não queríamos ficar ligados para sempre e não víamos valia num telemóvel, era bom ter férias e folgas e estar fora do radar.

Umas miúdas passam por mim entre risos e de telemóvel na mão, mais à frente um grupo de rapazes de barba, quase não se vê rapazes sem barba, conversa e passa os olhos pelo telefone e vejo um homem que parece falar sozinho, mas na verdade está a tratar de negócios pelo telemóvel. À porta do centro comercial, no entra e sai de gente, os fumadores estão ali entre os cigarros e o telefone. Há o mundo e o mundo do telefone, no meu, que está dentro da mala, as notificações apitam a cada instante. O trabalho obriga, digo muitas vezes, mas o trabalho paga muita coisa como quando me perco em vaidades e compro roupas e um creme que me promete menos 10 anos.

A verdade é que não saio de casa sem telemóvel, acho que já não sei como era antes, nem lembro bem que pessoa era quando jurei, ai em 1995, que não cederia ao impulso novo rico de ter comprar um telefone celular como ainda se dizia na altura. Que jeito dava aquilo, quem me iria telefonar ao preço das chamadas nesse tempo e com rede de má qualidade. Não era ‘cool’ estar ligado, quanto muito tínhamos um atendedor de chamadas, a cassete gravava as mensagens depois do sinal, o que era esquisito e apenas para uma minoria. Os outros todos ou estavam em casa ou falhavam a chamada.

Os desencontros por causa do telefone faziam parte das histórias das telenovelas, dos filmes e das nossas vidas. E quando tocava podia ser qualquer um. A tia para dar um recado, a menina Albertina da casa de bordados, a amiga da escola para combinar o cinema ou apenas um engano. À minha casa vinham bater os clientes impacientes de um senhor que consertava televisões e rádios e devia ser demorado; outras vezes ouviam-se conversas por baixo das nossas, mas a maior parte do tempo ficava silencioso em cima do aparador do quarto de jantar. Eu só lamentava que fosse preto como o da mercearia, os das novelas eram encarnados ou brancos.

Os das novelas e das pessoas importantes que davam entrevistas e tiravam fotografias como se estivessem a falar ao telefone. Um empresário ou político que se prezasse não dispensava a fotografia do telefone, quanto mais encenado melhor como que a combinar com o ambiente artificial da época. A pose dava bem com a alcatifa no chão e o bricabraque de fancaria que enchia as casas e os escritórios dos anos 80 e 90, onde reinava o dourado e os jarrões de loiça chinesa. E na redacções dos jornais acabávamos sempre apanhados ao telefone, que nessa altura era decisivo no trabalho. A agenda de um bom jornalista tinha todos os números onde os políticos paravam, até da sogra e do bar onde iam tomar um copo ao fim do dia.

Mas nós não queríamos ficar ligados para sempre e não víamos valia num telemóvel, era bom ter férias e folgas e estar fora do radar. Também se namorava, também se discutia e acabava tudo pelo telefone, mas era diferente. Entre uma conversa e outra havia silêncio, não saltavam sms a cada instante, nem fotografias, nem emojis apaixonados ou corações. O silêncio fazia a medida da distância e tínhamos de ocupar o tempo com livros, cinema e praia e quando isso não era suficiente sobrava o pensamento. Eu podia imaginar como seria Paris ou Londres, não tinha o Google para pesquisas, sonhava, fazia uma ideia a contar dali, de cima do terraço da minha casa do Laranjal.

Na mesa ao lado no restaurante um neto ensina a avó a mexer no telefone com todo o carinho e é o gesto mais humano que vejo. Os outros varrem o Facebook e o Instagram a ver quantos gostos teve o vídeo e a fotografia. Eu também que, entre a pessoa que fui em 1995 e agora, estou sempre ligada, dia e noite, vou com frequência ao Facebook, vejo os likes e dou outros. Não se pode fugir deste mundo que existe só no telefone, mas que tem várias gerações sequestradas num lugar que, de facto, não é real. O que existe é o neto que explica a Internet à avó, os grupos de rapazes com barba, os fumadores à porta do centro comercial e as miúdas aos risos, mas é como se a realidade não contasse, parece que não faz diferença o sol, as nuvens, a alegria ou a tristeza, ou só vale se se puder fotografar e publicar.